Mi Ojo Viejo

Mentiras lindas em palavras lindas, preparadas no calor da hora, temperadas com idéias rápidas para se saborear sem pressa...

28.9.06


O maior brasileiro de todos os tempos.

A Revista Época, requentando uma pauta jornalística já bastante explorada (a eleição do maior brasileiro da História), indicou Ruy Barbosa como o símbolo de virtudes individuais que justificariam sua escolha para o posto de exemplo de virtudes republicanas em uma História do Brasil que facilmente poderia fornecer personagens de impacto para a História Universal da Infâmia, de Jorge Luis Borges. Ruy Barbosa realmente é um símbolo que resiste com uma força incomparável em descrições que constatam esse homem pequeno (1,58 m de altura e 48 kg de peso, em um corpo quase raquítico) com sua obra de grande homem (“Baiano Genial”, “Homem mais inteligente do Brasil”, “Águia de Haia”, entre outras expressões de mérito). Uma análise mais equilibrada deveria trazer para junto de seu valor inquestionável, como na erudição, no compromisso com os ideais liberais e na coragem política, alguns questionamentos fundamentais, a saber: quanto de seu mito se deve ao seu pertencimento ao grupo da elite brasileira que podemos identificar com o bacharelismo e com os setores jurídicos (zelosos em ostentar um símbolo de lisura, brilhantismo intelectual, responsabilidade ética e senso de dever), até que ponto o real e o ideal podem se reafirmar mutuamente, ou ainda, em que medida esse personagem deixou uma herança ainda aceita ou representa uma tradição que foi superada? Oscar Wilde disse certa vez que Bernard Shaw não tinha um único inimigo em todo o mundo, mas que nenhum de seus amigos gostava dele. Ruy Barbosa representa o oposto, alguém que tanto enquanto vivia como após a sua morte, foi capaz de despertar simpatias e críticas igualmente apaixonadas – embora me pareça inevitável concordar com o diagnóstico de Wilson Martins (autor do História da Inteligência Brasileira, editado em sete volumes pela Cultrix e pela TAO, e que cobre a produção intelectual do Brasil do século XVI aos anos sessenta do século XX) que a importância de seu vulto diminui de acordo com que sua imagem está mais presente no que é relatado ou analisado do que naquilo que foi vivido. A tradição intelectual jurídica no país encontrou em Ruy Barbosa um mito fundador, muito mais pela relevância atribuída às suas ações políticas e forenses do que propriamente intelectuais – Fernando de Azevedo chama a atenção para a falta de interesse que o jurista demonstrava para com “discussões sutis, das argúcias e dos raciocínios especiosos”, Capistrano de Abreu o descreveu-o como destituído de cultura filosófica e limitado ao “terrestre amor das realidades”, e mesmo o jurista Miguel Reale reconheceu suas limitações enquanto filósofo ou pensador. Alguns de seus críticos, como Gilberto Freyre ou Mário de Andrade, lhe censuraram a postura política fortemente marcada pelo apego ao formalismo jurídico (o que permite um contraste com a perspectiva social presente no mesmo período em um pensador como Joaquim Nabuco, p.ex.) e o gosto pela retórica na sua concepção mais castiça e estéril, ao mesmo tempo em que embora crítico em relação às instituições tradicionais se alienou em relação aos problemas concretos de sua época. Seus adeptos chamam a atenção para a sua defesa do regime republicano e da estrita obediência às regras institucionais, aliadas à uma desconfiança em relação à política partidária e à ação estatal, que lhe permitiriam apostar na organização da sociedade civil e não se envolver nas disputas próprias à arena política. Em um momento de tensão e crise da política institucional, em que os mesmos valores republicanos e do liberalismo são mais facilmente lembrados em discursos do que em práticas, a escolha de Ruy Barbosa como o maior brasileiro de todos os tempos é muito mais um sintoma de nossas carências do que da possibilidade de qualquer gradação efetiva. Uma biografia honesta de Rui Barbosa apontaria para as contradições que ele e sua época ostentaram, tocando em pontos delicados como nos negócios que realizou com empresários e banqueiros durante e após ocupar o Ministério da Fazenda de Deodoro da Fonseca, na sua polêmica contra Clóvis Beviláqua e Carneiro Ribeiro sobre o Código Civil Brasileiro (na qual sua vaidade ferida por ter sido preterido em favor de outro jurista lhe fez objetar, entre outros arrazoados, que o uso da expressão “privada” no sentido de particular tinha inevitável mau cheiro!), no esforço próprio que fazia para manter o culto à sua personalidade (como em episódio risível no qual um copidesque – funcionário responsável pela correção gramatical em redações jornalística – percebeu que em determinada semana em coluna assinada por Ruy havia sido utilizadas três palavras incomuns que começavam com a mesma letra, e na semana seguinte, outras três, de outra letra, o que mostraria que como escritor o jurista baiano buscava impressionar seus leitores com uma erudição que era apenas pirotécnica verbal), no apego radical ao purismo lingüístico que lhe colocou como símbolo de uma época que foi radicalmente criticada e superada pelo modernismo, entre outras questões que iluminem o homem e a época. Infelizmente ainda estamos não só a esperar obra historiográfica que dê conta de personagem e época tão complexos, o que é uma constatação empírica, como também de lideranças que possam equiparar suas qualidades, o que é um desejo sincero.

Texto publicado na Pronto! Revista de Cultura ( www.revistaprono.com.br ), no dia 14/09/2006.

9.9.06


Essas mal traçadas linhas...

“Bem quisera escrevê-la com palavras sabidas, as mesmas, triviais, embora estremecessem de paixão. Perfurando os obscuros canais de argila e sombra, ela iria contandoque vou bem, e amo sempre e amo cada vez maisi, a essa minha maneira torcida e reticente, e espero uma resposta...” Assim, em um poema chamado Carta, Carlos Drummond de Andrade falava sobre esse ato de estabelecer uma ponte entre pessoas através da palavra escrita, pessoal e íntima, que é a correspondência.

Em tempos de e-mails a carta perde espaço, pois a ligeireza e o instantâneo da mensagem eletrônica parece mais atrativo do que a espera e o tempo passado da correspondência postal. A própria palavra “correspondência” traz em si uma conotação de reciprocidade, similitude, proximidade, que as trocas postais só fazem ampliar, nas quais, quer pela convergência ou divergência, os missivistas se igualam, colocam-se em um mesmo patamar de legitimidade que permite o escambo de opiniões, afetos, ofensas, informações, segredos, e todo o conjunto de sentimentos e conhecimentos que podem ser traduzidos na linguagem escrita. Enquanto as cartas podem levar consigo a esperança de que sejam guardadas os e-mails são escritos para serem apagados... (Rubem Braga, com aquela mistura de leveza e melancolia que caracterizam seus textos, tem uma bela crônica em que fala sobre um pacote de cartas antigas que encontra no fundo de uma gaveta e que relê, percebendo que se algumas coisas ditas ainda fazem sentido, outras, que pareciam tão urgentes, foram esquecidas... e guarda novamente o pacote, desejando que as pessoas que fizeram parte daquela correspondência também tenham o mesmo carinho pelo quinhão que lhes cabe nas trocas postais! Em relação aos e-mails me parece impossível tal cena...)

A pesquisa dedicada à cartas e diários tem se ampliado significativamente na historiografia brasileira, com a produção de trabalhos bastante relevantes sobre épocas, personagens, situações e contextos a partir do universo íntimo e pessoal contido nesse tipo de fonte. Embora a correspondência ou o diário sejam feitos para a intimidade, e o interesse que despertam possa despertar o voyeurismo do leitor, são fontes ricas para se desvendar subjetividades do remetente e do destinatário (assim como dos grupos sociais e culturais aos quais se vinculam e mesmo do autor da análise, um cúmplice do diálogo!), além de recuperar partes do passado e formas de construção da memória, principalmente quando se torna possível o acesso as mensagens tanto enviadas quanto recebidas (chamadas de correspondência “ativa” e “passiva”, respectivamente).

A poeta Ana Cristina César, que teve parte de sua correspondência publicada, diz em uma delas que "cartas e biografias são mais arrepiantes do que a literatura", porque deve perceber que se a literatura é a arte de se contar coisas da vida, as cartas e os diários trazem cicatrizes dessas coisas que não foram resultado da arte, mas da vida.

Coletâneas de “escritas de si” tem ocorrido com bastante constância no mercado editorial, estando disponíveis nas livrarias atualmente, entre outras, a Correspondência de Euclides da Cunha (EDUSP), A correspondência de uma estação de Cura (de João do Rio, Scipione), Correspondências (de Clarice Lispector, Rocco), Mário de Andrade e Manuel Bandeira (EDUSP), Correspondência (de Machado de Assis e Joaquim Nabuco, Topbooks), Correspondência Mário de Andrade e Tarsila do Amaral (EDUSP), entre outros.

Em termos analíticos a coletânea Escrita de Si, Escrita da História (Editora FGV), organizada por Ângela de Castro Gomes, oferece um rico panorama de trabalhos que se dedicam ao estudo da correspondência (além de diários íntimos e memórias) de notáveis, notórios ou não notados – abordando a “escrita de si” de pessoas como Antônio Pereira Rebouças (homem negro e auto-didata que se tornou um dos maiores civilistas do Direito brasileiro), de Oliveira Lima (sociólogo e jurista fundamental dentro do pensamento social brasileiro) , do sociólogo Gilberto Freyre (que publicou inclusive, entre seus diversos livros, um sobre algumas de suas cartas), Monteiro Lobato (que para além do autor infantil deve ser lembrado como romancista, empreendedor, polemista e autor da clássica reunião de algumas de suas cartas, A Barca de Gleyre), Paulo Prado (milionário paulista que além de empresário e mecenas, foi bom escritor e descrito por Eça de Queiroz como um modelo da perfeição humana), o historiador Capistrano de Abreu (um dos pais da moderna historiografia brasileira), Getúlio Vargas (que dispensa qualquer explicação), entre outros.

Tal tipo de produção bibliográfica, tanto de natureza acadêmica quanto comercial, deve se manter em constante renovação, sendo que o interesse que desperta torna explícito um dos grandes encantamentos que a História exerce sobre as pessoas: um indivíduo pode não ter nenhum dom artístico, literário ou musical, mas está emaranhado em uma memória sua e da sociedade da qual faz parte, o que lhe permite o seu reconhecimento enquanto unidade e também parte de um todo, de modo a poder dizer “eu vivi”, “eu vi” e “eu me lembro”, e isso é possível de ser compartilhado. Isso que justifica o trabalho do historiador.

Artigo publicado em Pronto! Revista de Cultura [ http://www.revistapronto.com.br ], em 02/08/2006, ilustração Cartão de Peregrinação por Santiago de Compostela.

8.9.06


Os Doutores Advogados.

Pero Lopes de Sousa foi um importante navegante português do século XVI, que participou de diversos episódios da História do Brasil a partir de sua descoberta, como a fundação das vilas de São Vicente e Piratininga, os descobrimentos do Rio de Janeiro, do Rio da Prata e da ilha de Fernando de Noronha. Um de seus menos conhecidos feitos foi o resgate, em 1531, de um naúfrago ou degredado que ficou conhecido como o Bacharel de Cananéia, pois se identificou como doutor em leis e afirmou já viver entre os índios há 30 anos.

Este bacharel, misto de figura histórica e mito (tanto que recebe a visita literária de Macunaíma, no romance de Mario de Andrade) não só é um sinal da cultura européia perdida nos trópicos como marca a aparição em terras brasileiras de um profissional que ao longo dos séculos seguintes se tornará motivo de respeito e despeito, além de um guardião burocrático e peça fundamental da organização política e administrativa da vida colonial, monárquica e republicana.

Paralelamente ao prestígio e poder gozado pelos bacharéis ao longo da história surgiu um movimento de resistência simbólica de diferentes grupos contra seu destaque na sociedade brasileira, como nos versos de Gregório de Matos (“Valha-nos Deus, o que custa, / O que El_rei no dá de graça, / Que anda a justiça na praça / Bastarda, Vendida, Injusta”), no relato do jesuíta André João Antonil que no Cultura e Opulência do Brasil, de 1711 (que adverte os proprietários rurais para “evitar demandas e pleitos que são uma contínua desinquietação d’alma e um contínuo sangrador de rios de dinheiro, que vai entrar nas causas dos advogados, solicitadores e escrivães, com pouco proveito de quem promove o pleito”), ou na quadrinha popular, de finais do século XIX (“Quando Deus voltou ao mundo, / Para punir os infiéis, / Ao Egito deu gafanhotos, / Ao Brasil deu bacharéis”), entre outros exemplos possíveis – ainda hoje, ao lado dos portugueses, das bichas e dos papagaios, entre outros menos votados, os advogados são um dos temas recorrentes que povoam as listas de piadas disponíveis na internet. (O sociólogo Peter Berger lamentou certa vez a inexistência de piadas sobre a sua profissão, identificando nesse tipo de manifestação uma forma de visibilidade social, ou, dizendo de outra forma, às vezes é melhor ser vaiado em seu Audi TT do que aplaudido no ônibus Mercedes de uma empresa de transporte urbano!)

Diversos autores analisaram a inserção dos bacharéis na vida intelectual e política brasileira, objeto de historiadores, sociólogos e juristas, sob diferentes orientações teórico-metodológicas, como em livros ou capítulos de Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freire, Maria Isaura de Queiroz, Raimundo Faoro, Fernando Uricochea, José Murilo de Carvalho, entre outros, o que mostra a visibilidade conquistada pelo grupo tanto política como socialmente.

As origens dessa aura de poder e prestígio que cercam os advogados se liga ao período colonial quando as elites enviavam seus filhos para a Universidade de Coimbra, em Portugal, e às vezes, Montpellier ou Paris, na França, para que ampliassem suas formações intelectuais e conquistassem o grau de bacharel, que na realidade se mostrava como um atestado de cultura literária e abstrata capaz de colocar ao alcance do interessado cargos profissionais e burocráticos.

Com a instauração das Faculdades de Direito de Olinda/Recife e São Paulo, em 1827, essa formação passa a ser feita no país, embora sob influência do modelo português, mantendo o mesmo prestígio, a partir da carga simbólica e das possibilidades políticas que se apresentavam aos profissionais de direito, que alcançavam os postos de ministros, senadores, governadores e deputados, além de que muitos se convertiam em influentes pensadores sobre os destinos do país ou monopolizadores dos debates intelectuais da sociedade local.

Escrever sobre esses profissionais é enfrentar um grande desafio, pois o destaque que obtiveram em diferentes momentos da vida pública brasileira e as questões de fronteiras entre as áreas do conhecimento que despertam surgem como obstáculos de extensão e de profundidade. Não é caso isolado a dificuldade de diferentes áreas das ciências humanas sentirem dificuldade em trocar elementos com o campo jurídico e acabarem se distanciando do tema ou produzindo estudos incompletos, enquanto diversos estudos jurídicos se mostram incapazes de dialogar com as ciências humanas e se convertem ao reducionismo institucional ou, pior ainda, ao simples proselitismo forense – com aquela chuva de adjetivos e citações latinas que caracterizam essa tradição da qual Rui Barbosa é uma figura de referência. (Um autor de livro didático sobre sociologia jurídica afirma na apresentação do mesmo que os trabalhos na área, com poucas exceções, tendem a ser como o Sacro Império Germânico, que apesar do nome não era nem Sacro, nem Império, e nem Germânico... e talvez isso ocorra em diversas áreas fronteiriças!)

Entre os destaques positivos recentes da Sociologia e da História que se dedicaram ao tema gostaria de destacar os livros de Edmundo Campos Coelho, Keila Grinberg e Eduardo Spiller Pena. Os historiadores Eduardo Pena (Pajens da Casa imperial: jurisconsultos, escravidão e a lei de 1871, Editora da UNICAMP) e Keila Grinberg (O Fiador dos Brasileiros: cidadania, escravidão e direitos civis no tempo de Antônio Pereira Rebouças Civilização Brasileira), discutem, respectivamente, a importância político-administrativa dos bacharéis no Segundo Reinado e os impasses que a ordem escravocrata colocavam para o ordenação jurídica da época e a trajetória pessoal e profissional um mulato auto-didata que se tornou um dos maiores civilistas do século XIX, em meio às contradições sociais e institucionais do escravismo brasileiro, enquanto o sociólogo Edmundo Coelho (As Profissões Imperiais: Medicina, Engenharia e Advocacia no Rio de Janeiro, Editora Record) faz um retrato extremamente minucioso e interessante sobre a implementação do mercado de trabalho jurídico na capital do país durante o século XIX e início do XX, apontando os conflitos e desafios que os bacharéis enfrentaram na institucionalização de sua profissão – esse último, além da qualidade acadêmica, pela amplitude das pesquisas e capacidade de análise também presente nos outros dois autores tem um estilo de escrita extremamente agradável, livre de certos vícios da linguagem acadêmica!).
Ao mesmo tempo em que a história deseja ampliar seus temas, suas fontes e seus métodos, o campo jurídico no Brasil se oferece como rara oportunidade para tanto, pelo que se refere às instituições, aos grupos e aos indivíduos nele envolvidos, assim como pela volumosa massa documental acessível e manejável. Ganhos reais na análise do historiador podem se derivar na inevitável institucionalização e burocratização dos ritos jurídicos, assim como na crescente necessidade de refinamento da historiografia produzida por membros do judiciário e pelo interesse despertado por uma área do conhecimento que congrega cerca de 800 cursos universitários no país, com 750 mil alunos aproximadamente (segundo os dados mais recentes do MEC). (Aliás, esse excesso de cursos e alunos também tem suas causas estranhas e histórias desconhecidas, que não são castigos bíblicos, mas somente manifestações de fariseísmo - e mesmo que não sejam uma praga de gafanhotos, já são um enxame de bacharéis ou um vexame educacional, mas isso é uma outra estória...).

Artigo publicado em Revista Pronto de Cultura [ http://www.revistapronto.com.br/ ], em 31/08/2006, ilustração charge "Como reconhecer um futuro advogado."

5.9.06


Quem não entende, quem entende e quem é entendido...

Se todos soubessem como cada um transa, ninguém se cumprimentava. A afirmação inspirada de Nelson Rodrigues, o anjo pornográfico, chama a atenção para o medo, a atração, o asco, a excitação, o risco, a anarquia e a loucura que o desejo do outro pode nos apresentar.

A natureza dotou os seres humanos de dois tipos de órgãos sexuais, o pênis do menino (seu primeiro brinquedo de armar) e a vagina da menina (a sua caixinha de surpresas), que foram ganhando diferentes nomes ao longo dos tempos e lugares (como diz o poeta José Honório em dois poemas fesceninos):

“Peia, cipó, mandioca, /carabina, prego e talo, /estaca, pica, badalo, /sarrafo, pomba, biloca, /pinto, manjuba, piroca, /vergalhão, também mangalho, / lingüiça, cajado, malho, / nervo, trabuco, bilola, / JOÃO DOIDO, CACETE, ROLA... / TUDO É NOME DO CARALHO.”

“Vagina, papuda, greta, / xanha, lasca, racha e fruta, / tabaco, chibiu e gruta, / fenda, bainha e buceta, / desejada, cara-preta, /e bacurinha também / é vizinha do sedém / talho, pipiu e xiranha, / XIRI, PERERECA, ARANHA / QUANTO NOME A BRECHA TEM.”

No entanto, a cultura, produto das muitas relações entre natureza, necessidade e vontade, permitiu uma infinidade de relações desse diferentes nomes uns com os outros e entre si, de forma que sodomitas, gays, invertidos, monas, bibas, lésbicas, sapatas, sandalinhas, entendidos, bichas, loucas, butis, bonecas, gls’s e outras etiquetas para definir as formas de relacionamento entre pessoas que buscam parceiros do mesmo sexo biológico passam a ser uma pequena parte das infinitas manifestações da sexualidade humana, extremamente diversa, fragmentária e dinâmica. (A Enciclopédia de Práticas Sexuais, de Brenda Love, editado pela Gryphus, oferece uma didática lista da heterodoxia sexual humana, de tal forma extensa e detalhada que quaisquer que sejam as opções e práticas do leitor, este poderá descobrir sua relativa inocência ou ignorância, assim como seus preconceitos, limites ou possibilidades.)

Estudos nas ciências humanas sobre a homossexualidade tem uma bibliografia bastante significativa no Brasil, particularmente no caso da homossexulidade masculina (o que também ocorre na literatura, vide O Ateneu, de Raul Pompéia, Dona Sinhá e o Filho Padre, de Gilberto Freyre, O Encontro Marcado, de Fernando Sabino, Cristo Partido ao meio, de Aguinaldo Silva, ou o exemplo de relação lésbica presente em Ciranda de Pedra, de Lygia Fangundes Telles, entre outros livros), em trabalhos que analisam a homossexualidade no passado (os diversos trabalhos do professor Luiz Mott, da UFBA, são um excelente exemplo dessa vertente), a formação da identidade sexual (como o estudo de James Green, Além do Carnaval, editado pela UNESP), a situação sócio-cultural dos travestis (Don Kulick, Travesti, da Chicago University Press) ou o movimento homossexual (Richard Parker, Abaixo do Equador: culturas do desejo, homossexualidade masculina e comunidade gay, editado pela Record), etc. etc. etc. , capazes de informar quem não entende, quem entende e quem é entendido!

O “orgulho gay” que se explicita em passeatas gigantescas nos grandes centros, no entanto, ainda está longe de eliminar a homofobia, embora já tenha sido capaz de anular muitos dos estigmas atribuídos ao homossexual – mesmo porque quando se percebe que sexo é poder e a luta pelo poder está diluída em muitos níveis do social, entre diferentes atores e práticas, é fácil concordar com a afirmação de feministas de que se os homens engravidassem o aborto seria um sacramento, ou de um militante gay de que se normalidade fosse algo criado pela maioria matemática, sexo normal seria a masturbação.

Talvez o grande desafio para heteros, homos, bis, e todos os rótulos sexuais possíveis que envolvam atividades eróticas consentidas entre adultos, seja construir o respeito pela diferença, manter suas identidades e evitar a normatização (em um processo em que não importará mais com quem se faz sexo, mas a forma como se faz sexo ou o papel que o sexo em da modo de vida, como resultado de uma domesticação do desejo, mais uma forma de ligação do indivíduo com Matrix!).

Que essa força anárquica que é o desejo não permita ao homem esquecer o que disse Bertod Brecht em um de seus poemas eróticos (que pessoalmente acho melhores do que os mais conhecidos, de cunho político bolchevique): “Do homem a arte é foder e pensar.”

Artigo publicado em Pronto! Revista de Cultura [ http://www.revistapronto.com.br/ ], em 24/08/2006, ilustração Nú e mãos, de Jan Saudek.

3.9.06

Os filhos de Ismael e Isaac.

A origem mítica de árabes e israelenses remonta ao Gênesis, no Velho Testamento, quando Abraão tem dois filhos, Ismael, com sua escrava Agar, e Isaac, com sua mulher Sara, sendo que o primeiro foi expulso de casa junto com sua mãe, em direção ao deserto, formando a tribo dos ismaelitas (da qual os árabes descenderiam), e o segundo se tornou o herdeiro legitimado (e referencial de origem da comunidade judaica).
Historicamente, desde quatro mil anos antes de Cristo tribos semitas se fixaram na região do Oriente Médio conhecida como Canaã, mais tarde chamada Palestina, sendo que os hebreus, uma das tribos semitas, ali chegaram sob o comando de Abraão cerca de dois mil anos após os primeiros grupos.
A Palestina, na Antiguidade, foi dominada seguidamente por macedônicos, romanos e bizantinos (sendo que se destaca a expulsão dos hebreus da região pelos romanos no século II d. C. , episódio conhecido como Diáspora Hebraica), e posteriormente, na Idade Média, por persas e árabes (esses últimos também semitas) que unificaram a região através do idioma e do islamismo, enquanto os judeus se encontravam espalhados pelo mundo.
Entre o século XVI e o início do XX a região esteve sob o domínio do Império Turco Otomano, o que se alterou a partir da Primeira Guerra Mundial quando este foi derrotado e cedeu o controle da região para a Inglaterra.
O século XIX assistiu ao surgimento de movimentos nacionalistas árabes no Oriente Médio e do Sionismo, movimento político hebraico que propunha a criação de um Estado Judeu na Palestina, para abrigar os judeus dispersos pelos diferentes cantos do globo, através da aquisição de terras na região (origem de sérios conflitos entre os tradicionais e os novos habitantes).
O Sionismo, a luta pela formação da nação judaica na Palestina, significa não só um movimento de resgate de raízes históricas de um povo que manteve suas tradições e língua ao longo de quase dois mil anos sem um território, mas também a promessa da construção de uma proteção para homens e mulheres cujas seguidas gerações anteriores sofreram perseguições anti-semitas (com movimentos de ordem religiosa, política, econômica e racial, que impunham o segregacionismo material e cultural aos judeus, bem como a limitação de seus direitos de cidadania) justificadas pela intolerância com a manutenção da sua identidade religiosa, seu alto nível relativo de escolaridade e renda frente aos povos das regiões em que se fixaram, suas particularidades culturais e seu enorme esforço de preservação de seus costumes ancestrais. (Um livro da década de oitenta listava os quinhentos judeus mais importantes da História, e nomes como Abraão, Jesus Cristo, Einstein, Freud, entre outros torna a lista um desfile de poder, talento, poder e perseverança.)
Por outro lado, a população palestina desenvolveu, a partir do século XIX, um forte sentimento anti-semita em relação aos judeus que migravam para a Palestina, fundamentando-se na questão religiosa (o Alcorão faz referência direta aos judeus como um povo não confiável, formado por elementos minoritários e que precisa ser mantido sob domínio), na perda da posse da terra (uma vez que a economia de subsistência dos palestinos foi facilmente superada pela quantidade de recursos dos judeus que imigraram para a região) e no modo de vida “ocidentalizado” de seus novos vizinhos.
Após a Segunda Guerra Mundial a imigração judaica para a Palestina cresce vertiginosamente, enquanto que em 1945 as nações árabes da região buscam implementar um projeto coeso de política externa para o Oriente Médio através da criação da Liga Árabe (congregando Argélia, Egito, Arábia Saudita, Iraque, Jordânia, Iêmen, Síria e Líbia) ao mesmo tmepo em que as Nações Unidas resolveram em 1947 dividir o território palestino formando Estados independentes e uma zona neutra em Jerusalém, ficando a população palestina (de cerca de um milhão e trezentos mil habitantes) com 11.500 Km2, enquanto a população hebraica (cerca de 700.000 habitantes) recebeu 14.500 Km2, o que levou a Liga Árabe a atacar Jerusalém e ocupar a Galiléia ao norte, enquanto o líder sionista David Ben Gurión proclama a fundação do Estado de Israel e comanda a retaliação com as tropas do novo país, que se torna vitorioso em seu primeiro conflito regional, ampliando a área israelense para 20.900 Km2, dividindo Jerusalém (com 105.000 árabes e 100.000 judeus) entre Jordânia (setor oriental) e Israel, ao mesmo tempo em que seiscentos mil palestinos saem da região, para países vizinhos.
Novos conflitos ocorreram entre Israel e seus vizinhos árabes, com seguidas vitórias israelenses, permitindo ampliar as áreas sob o controle hebraico para 89.489 Km2: o Egito (a Guerra do Sinai, em 1956), a coligação de Egito, Síria e Jordânia (a Guerra dos Seis Dias, em 1967, quando os judeus ampliaram seu controle militar sobre a península do Sinai, do Egito, Gaza e Cisjordânia, últimos territórios controlados pelos palestinos, e as colinas de Golam, da Síria, ampliando o número de palestinos que fugiram para países árabes para mais de um milhão de pessoas), e ainda o Egito e a Síria (a Guerra do Yom Kippur, em 1973).
Sob a interferência dos Estados Unidos, da União Soviética e da ONU, foram feitos acordos de paz em 1.973, 1974 e 1.975 entre árabes e judeus, sendo que alguns dos mais importantes foram os Acordos de Camp David , de 1978, assinados pelo presidente do Egito, Anuar Sadat, e pelo primeiro-ministro de Israel, Menahem Begin (que estabeleceu a retirada das tropas judaicas e a devolução do Sinai ao Egito, para 1982, concedeu autonomia limitada aos palestinos de Gaza e da Cisjordânia e manteve as colônias judaicas existentes nesses territórios), a Conferência Internacional de Paz para o Oriente Médio, de 1991, em Madri, entre judeus e palestinos (representados pela OLP, Organização para a Libertação da Palestina), e os Acordos de Oslo, de 1993, nos quais Yasser Arafat, representante dos palestinos, e Isaac Rabin, premiê israelense, assinaram a Declaração de Princípios de Washington, que incluiu o reconhecimento de Israel, a autonomia da Cisjordânia e de Gaza e as bases do futuro estatuto de Jerusalém.
No entanto, o “ressentimento ilimitado” entre judeus e palestinos tem funcionado como um poderoso combustível para o reaparecimento de conflitos, que se alastram para as regiões vizinhas, em que facções fundamentalistas islâmicas (como o Gammaat-i-Islamia, no Egito, a Frente Islâmica de Salvação - FIS, na Argélia, a milícia xiita libanesa Hezbollah – palavra que significa ”Partido de Deus”, e o grupo palestino Hamas) e os partidos políticos de Israel (o Trabalhista, que apóia a paz, e o Likud, que não aceita a negociação) vociferam em meio a atentados terroristas contra alvos israelenses e ações militares judaicas contra instalações e campos de refugiados palestinos.
A superação de conflitos entre palestinos e israelenses, com intervenções da ONU, dos EUA e dos países árabes, se mostra instável, pois os interesses internacionais (ou a falta deles) na região e a intolerância mútua permitem imaginar que Isaac odeia Malik, que odeia Davi, que odeia Faruq, que odeia Ariel, que odeia Yasser, que odeia Efraim que junto com Muhammad tentam viver em paz entre atentados e bombardeios.

(Artigo publicado em Pronto! Revista de Cultura [ http://www.revistapronto.com.br/ ], em 16/08/2006)

2.9.06

É preciso ser pobre ou preciso ter raça?

Um dos momentos memoráveis da televisão brasileira ocorreu quando Marcelo Tas, interpretando seu repórter-personagem Ernesto Varela, perguntou ao senhor Paulo Maluf se o povo não gostava dele por causa das acusações de corrupção e o político respondeu que o povo sabia que ele era um empreendedor e gostava muito dele... o repórter então perguntou: “Dr. Maluf, o senhor acredita que eu acredito que o senhor acredita nisso que me respondeu?”
Infelizmente a arte da desconfiança geralmente só é utilizada quando nos defrontamos com algo que contraria nossas convicções e valores, e o questionamento se torna veemente mais pelas crenças do que pelo conhecimento. (Millôr genialmente definiu essa situação a partir dos livros: "Não ligo se o escritor / É leviano ou denso, / Nem me importa se o livro / É pequeno ou imenso / Eu gosto é de autor / Que pensa o que eu penso.")
A universidade brasileira agitou-se recentemente devido ao debate sobre os projetos da lei de Cotas (PL 73/1999) e do Estatuto da Igualdade Racial (PL 3.198/2000), o que é sintomático da importância do tema para essa instituição e seus membros, e positivo para a sociedade como um todo que vê com maior clareza a participação de seus intelectuais, manifestando-se favorável ou contrariamente ao tema. (Os dois manifestos, a favor e contra tal iniciativa, estão disponíveis em http://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u18773.shtml .)
O filósofo Chaim Perelman (autor de Retóricas e de Tratado da argumentação: a nova retórica, ambos editados no Brasil pela Martins Fontes) identifica a retórica como uma técnica discursiva capaz de provocar a adesão através do raciocínio, criando um significativo consenso, o "acordo", que não é conseqüência da verdade, mas sim da legitimação de propostas consideradas justas, eqüitativas, razoáveis, honrosas ou conforme o direito, de tal forma que uma tese pode ser admitida ou afastada porque é ou não oportuna, socialmente útil, justa ou equilibrada.
Logicamente que a chance de sucesso na obtenção desse "acordo” depende do reconhecimento pelo “orador” das idéias, concepções e valores admitidos por seu “auditório” (público),e que usadas como pontos de apoio para sua argumentação permitem buscar a adesão através das técnicas de oratória.
Embora uma mesma ação, por exemplo, possa ser descrita como o ato de apertar um parafuso, montar um veículo, ganhar a vida ou favorecer o fluxo de importações, o orador busca explicá-la de acordo com a percepção do auditório, estabelecendo relação direta entre fato e uma de suas interpretações, relegando as demais ao ocultamento.
Assim, podemos entender os manifestos a favor e contra a Lei das Cotas e o Estatuto da Igualdade Racial como peças de retórica, tentativas de convencimento, que possuem um “orador” e um “auditório”, propõem um “acordo” e se baseiam em certas idéias, concepções e valores.
Embora ambos os lados possam não concordar sobre a definição que proponho, entendo que o orador pró-cotas é o “Movimento Negro” (rótulo usado na falta de algo melhor, para definir parte de um movimento social com divisões internas, diferenças ideológicas e outras particularidades que qualquer rótulo encobre, assim como aliados diversos) e o anti-cotas é a “Universidade” ( rótulo com a mesma limitação da anterior), e que vão buscar adesões em setores próximos às suas perspectivas, e o auditório é composto pelo Congresso Nacional e a “Sociedade Brasileira” (entendida como a opinião pública e os setores organizados que ainda não se posicionaram sobre o debate).
O “acordo” proposto se liga à aceitação ou rejeição do processo de racialização do debate sobre a exclusão social e a oficialização desse referencial, uma vez que os pró-cotas entendem que a sociedade brasileira é racializada (divididas em raças no seu cotidiano, que cria diferenças em termos de oportunidades) e que a adoção de critérios raciais seria um caminho imprescindível para superar desigualdades, e os anti-cotas redimensionam a questão racial afirmando que oficializar a racialização não atende plenamente a questão social e cria precedentes para acentuar conflitos raciais, ao invés de superá-los.
As idéias, concepções e valores apelam para a dívida histórica, a justiça social, a obrigação moral, o ideal republicano, a igualdade jurídica, entre outros.
O “Movimento Negro”, influenciado por perspectivas de certas vertentes da militância de seu correlato norte-americano, não só luta pela afirmação da negritude como entende ser necessário, em termos de estratégia política, a racialização (como pode se perceber pelo lema dos 4 Pês – “Poder para o povo preto”).
Em polêmico artigo dos sociólogos Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant, intitulado “Sobre as Artimanhas da Razão Imperialista”, é feita uma forte critica a adoção da perspectiva norte-americana pelo movimento negro no Brasil, sendo que a Revista de Estudos Afro-Asiáticos (Vol 24, no. 1, 2002) organizou um dossiê com o artigo e com a discussão sobre às suas colocações por Jocélio Teles dos Santos, Edward Telles, John French e Michael Hanchard (os artigos estão disponíveis em http://www.scielo.br/ , bastando procurá-los pela revista – Estudos Afro-Asiáticos, ou pelo assunto e autor – Bourdieu).
A questão da racialização, portanto, é o pomo de discórdia do debate, quer isto esteja explícito ou não.
Mas porque a Universidade se manifesta com veemência contra a questão das cotas? As razões são diversas: primeiro, porque embora o processo seletivo através do vestibular sempre tenha sido objeto de críticas (tanto pelo seu aspecto formalístico como pelo elitismo dos sistemas pré-vestibulares) ainda desfruta de certa legitimidade por teoricamente selecionar por mérito; segundo, o receio de que a introdução de indivíduos com uma formação escolar deficitária sobre o montante considerado mínimo necessário para acompanhar os estudos de graduação comprometeria o processo de ensino aprendizagem ou criaria um ônus a mais para a universidade (através da necessidade, à exemplo do que têm feito faculdades privadas – onde geralmente existem mais vagas do que candidatos nos processos seletivos, da criação de mecanismos de nivelamento, como cursos extras com conteúdos do ensino médio para que os ingressantes possam acompanhar as aulas do ensino superior); terceiro, porque a Universidade pública brasileira vem sendo sucateada ao mesmo tempo em que é obrigada a adotar compromissos assistencialistas por causa da omissão do Estado (de seu minguado orçamento não só é obrigada a manter o ensino, a pesquisa, a gestão e a extensão, como prestar serviços à sociedade - como clínicas médicas e odontológicas, entre outros - além de oferecer moradia, ajudas de custo, alimentação e transporte na forma de bolsas de caráter social para parte de seus alunos), sendo vitimada por iniciativas demagógicas, populistas e inconseqüentes de seguidos governos; quarto, porque o conceito de “raça” é uma construção social cuja utilização se liga a diferentes fins políticos, sociais e econômicos (muitas vezes para desqualificar um grupo social específico e justificar a supremacia de outro) e a adoção de um critério oficializado pelo Estado brasileiro de classificação racial é entendido como uma temeridade por suas conseqüências; e finalmente, porque embora um significativo número de seus membros aceitem as cotas, ou mesmo as defendam (grupo no qual eu me incluo!), entendem que estas devam obedecer critérios sócio-econômicos, como origem, local de residência, renda familiar e acesso a bens e serviços considerados universais.
O “Movimento Negro”, por sua vez, não aceita a sobreposição da questão social à questão racial, ou seja, a adoção de critérios sócio-econômicos ao invés de raciais (embora estudos mostrem claramente aquilo que na constatação empírica um cantor baiano notou: “como é que pretos, pobre e mulatos e quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados...”), porque isso não reverteria em fortalecimento de sua identidade – a inclusão de “pobres” não é a inclusão de “negros”, mesmo quando esses negros são pobres!
Em uma questão sem fim sugiro três livros que podem enriquecer o debate: uma coletânea organizada por Cláudia Barcellos Rezende e Yvonne Maggie, chamada Raça como retórica: a construção da diferença (Civilização Brasileira), em que se discute esse conceito e suas implicações, e um livro ainda não publicado no Brasil, do antropólogo John Burdick, Blessed Anastacia (Routledge), que propõe analisar a construção da identidade racial através da prática religiosa (o culto à escrava Anastácia e as religiões pentecostais) e do recorte por gênero, e não pelo viés político, o que marca sua originalidade e valor,e finalmente, As funções da retórica parlamentar na Revolução Francesa (UFMG), de Hans Ulrich Gumbrecht, que discute as diferenças entre o que se diz e o que se quer dizer na política através de um exemplo histórico bastante conhecido.
No século XIX era comum no Rio de Janeiro uma criança negra encontrar um parente mais velho e lhe pedir a benção, ouvindo em resposta: “Que Deus lhe branqueie!” Imaginando que ao invés de raça devamos pensar em culturas e em suas infinitas contribuições quando dialogam e permitem superar tensões, parafraseio o cantor Itamar Assumpção: Que Deus nos preteje!


Artigo publicado em Pronto! Revista de Cultura [ http://www.revistapronto.com.br/ ], em 25/07/2006

1.9.06


Tem História no ORKUT?

O fenômeno da Internet, o site de relacionamentos ORKUT, de propriedade do Google, agrega cerca de 19 milhões de usuários que se distribuem em comunidades dos mais diversos assuntos e interesses.

Nesse mar de informação e curiosidade as comunidades brasileiras de História e História do Brasil somam atualmente respectivamente 13 mil e 31 mil membros, entre estudiosos, estudantes, diletantes e curiosos, sendo que uma amostragem tão ampla permite perceber certas recorrências em relação à visão que se tem da História, dos historiadores, da historicidade e da historiografia.

As questões, colocadas na forma de tópicos, se dividem em procedentes e improcedentes, sendo que no último grupo podemos delimitar certos eixos:
a) temas enciclopédicos: perguntas sobre minúcias e particularidades de fatos e personagens;
b) futurologia: manifesta-se em questões do tipo “como a história irá ver tal evento contemporâneo ou passado dentro de algum tempo” e outros do mesmo naipe;
c) o maior, o melhor e o pior: tentativa ingênua de estabelecer um gradiente comparativo entre presidentes, historiadores, sistemas econômicos e políticos, personagens, etc. ;
d) dúvidas escolares: que vão desde a solicitação da solução comentada de um exercício de vestibular ou concurso, passando pela solicitação de bibliografia sobre determinado tema, e terminando em pedidos de trabalhos escolares por parte de alguns espertinhos/vagabundos;
e) questões “gnômicas”: miscelânea que reúne representantes de teorias conspiratórias, simpatizantes da ufologia, revisionistas anti-semitas, criacionistas, entre outros grupos cujo mote é “Eu QUERO acreditar!”.

A crença de que os historiadores são dotados de uma memória infinita é ilusão cultivada por leigos e alimentada por alguns professores que na busca de admiração desfilam de forma pirotécnica seus arsenais de curiosidades e datas importantes. Na realidade essa crença é desafiada por duas limitações insuperáveis: a natureza do conhecimento historiográfico, que é por definição cumulativo e parcial, ou seja, sempre está sendo ampliado e nunca é definitivo, e o diálogo da História com os demais ramos do conhecimento, que se dá em uma velocidade e profundidade incapaz de ser acompanhado de forma completa por qualquer ser humano – segundo especialistas são introduzidas na Internet cerca de um milhão de novas home-pages por dia, os melhores instrumentos de busca na Internet só acessam cerca de 40% de seu real conteúdo, e o conhecimento humano dobra a cerca de cada cinco anos, o que transcende a capacidade de retenção mesmo de computadores poderosíssimos. Portanto, em caso de curiosidade legítima – porque existe a curiosidade cruel, quando na sala de aula, p. ex., o aluno pergunta apenas para ver se o professor reconhece que não sabe a resposta – sugiro usar um bom instrumento de busca na mesma Internet e consultar uma boa enciclopédia para sanar questões pontuais do tipo “qual era o nome do cavalo de Napoleão?” (mesmo porque o imperador teve dezenas de cavalos, muitos com nomes repetidos...). Aliás,, no próprio ORKUT tem uma comunidade chamada “Historiador não é enciclopédia”.

A futurologia encontrou seu ápice em escritores como Alvin Toffler (autor de A Terceira Onda ou O choque do Futuro, entre outros), que se tornou milionário pela curiosidade que o público tinha sobre as possibilidades de mudança na sociedade industrial contemporânea, mas é mais uma forma de literatura do que uma ciência. Quando um historiador fala algo sobre o futuro (o que vale também para questões do tipo “e se...?”) o faz enquanto cidadão/indivíduo/pessoa e expõe suas crenças e perspectivas pessoais, de forma totalmente subjetiva, ou seja, são opiniões e não certezas que estão sendo expostas, mesmo porque o objeto da História é o passado e não o futuro. Mesmo certos setores do mercado editorial estrangeiro exploram o filão da “história do futuro” ou da “história conjectural”, em que se escrevem obras sobre como teriam sido as conseqüências para a nossa sociedade se algum fato significativo fosse alterado, mas são devaneios literários, uma experiência estética com forte relação imaginária entre certas causas e seus efeitos, bem distantes de um exercício de raciocínio historiográfico. Portanto a resposta obtida na comunidade de História ou História do Brasil sobre como o futuro verá o governo Lula, p. ex., tem a mesma legitimidade de uma obtida na comunidade “Torcedores do Tabajara Futebol Clube”...

Maior, melhor e pior são adjetivos que permitem expressar a subjetividade de quem os usa, o que pode ser interessante mais para nos informar sobre aquele que fala do que sobre aquilo que se fala... um gradiente comparativo entre presidentes, historiadores, sistemas econômicos e políticos, personagens históricos, exércitos, entre outros aspectos históricos tem a mesma legitimidade que a discussão entre torcedores de diferentes times sobre qual deles é o melhor (oportunidade em que podemos exercitar nossa compaixão para com aqueles infelizes que são incapazes de torcer pelo mesmo esquadrão que escolhemos!), mas é só. A vantagem de discutir futebol ao invés de história, nesse contexto, é que no primeiro caso o local permite variações em que o álcool etílico, as conversas paralelas, gritos e urros não vão macular a questão da legitimidade da discussão, enquanto historiografia de boteco é uma contradição em termos (assim como sociologia ou política de boteco também o são!).

A aproximação de pessoas e a troca de informações são os grandes méritos da internet, sendo que para alguém que nasceu antes da década de 80 a sua utilização representa de forma clara uma ruptura em relação às experiências anteriores de mesma natureza. A aprendizagem e a pesquisa a partir da Internet, por sua vez, ganharam novos métodos e novas dimensões, criando a oportunidade inovadora de aproximar de forma ágil e intensa pessoas que desejem compartilhar seus conhecimentos – ao mesmo tempo em que criou dois problemas graves: a coexistência no mundo virtual de sites sobre o mesmo assunto que oscilam entre a excelência em qualidade e a mediocridade explícita, e a especialização de pessoas e empresas dedicadas a produção em série de trabalhos escolares e acadêmicos, assim como a facilitação do plágio. No entanto, os aspectos positivos superam em muito os negativos, e as mesmas ferramentas que possibilitam a disseminação de informações incompletas ou inexatas, assim como as fraudes escolares e acadêmicas, também podem permitir a sua constatação, bastando um clique de mouse para checar uma informação ou verificar a originalidade de um trecho de texto. Dias melhores virão...

Finalmente a categoria mais polêmica, e que desperta embates acalorados: as questões “gnômicas”. São chamadas assim, pelos fundadores da comunidade História, aqueles tópicos em que geralmente diletantes, carentes de informação de natureza científica, apresentam teorias equivocadas e/ou conspiratórias para negar certos conhecimentos históricos consensuais (em um amplo leque que vai da afirmação da existência dos deuses astronautas e sua herança nas civilizações da antiguidade oriental até a factualidade histórica do livro O Código Da Vinci, passando pela veracidade inquestionável de todos os relatos bíblicos). Bernard Shaw afirmou certa vez que o ser humano não suporta doses muito maciças de realidade, necessitando portanto de certas ilusões conscientes e inconscientes, e Carl Sagan escreveu um belíssimo livro (O Mundo assombrado pelos Demônios, Companhia das Letras) sobre a credulidade em explicações irracionais nessa mudança de milênio. Os casos mais graves, no entanto, não são fruto somente da desinformação, mas também da falta de caráter, sendo significativo o número de manifestações sexistas e racistas em tópicos que invocam o evolucionismo social, a xenofobia, a misoginia, o anti-semitismo, entre outras bases como justificativas para demonstrações de preconceito, intolerância e problemas psíquicos. Enfim, ao lado daqueles que necessitam de informação e orientação existem outros que são casos mais graves, de natureza patológica ou criminosa, sobre os primeiros temos que reconhecer que todos somos ignorantes, embora sobre coisas diferentes, e os últimos ter a tranqüilidade de que tais casos não são contagiosos!.

Portanto, para a questão inicial de que se é possível encontrar-se História para ser apreciada e aprendida no ORKUT, deve-se responder que como a Internet e o ORKUT são ambientes públicos e amplos, a variedade de referenciais é esperada e inevitável, sendo necessário, assim como a todo conteúdo disponível na rede, que o interessado utilize seu senso crítico e o maior cruzamento possível de informações para não ser prejudicado pro uma visão parcial ou equivocada de qualquer questão. Como nesse caso, ao contrário do senso comum, a curiosidade pode oferecer surpresas agradáveis ao encontrar-se em certas comunidades mais especializadas e com número menor de membros ajuda qualificada e companheiros de interesses, recomendo que busque entre bites e bytes essas oportunidades. Divirtam-se!

(Artigo publicado em Pronto! Revista de Cultura [ http://www.revistapronto.com.br/ ], em 18/07/2006; ilustração Foto de Heródoto e Tucídides, retocada por Mi Ojo Viejo)