Mi Ojo Viejo

Mentiras lindas em palavras lindas, preparadas no calor da hora, temperadas com idéias rápidas para se saborear sem pressa...

1.9.06


Tem História no ORKUT?

O fenômeno da Internet, o site de relacionamentos ORKUT, de propriedade do Google, agrega cerca de 19 milhões de usuários que se distribuem em comunidades dos mais diversos assuntos e interesses.

Nesse mar de informação e curiosidade as comunidades brasileiras de História e História do Brasil somam atualmente respectivamente 13 mil e 31 mil membros, entre estudiosos, estudantes, diletantes e curiosos, sendo que uma amostragem tão ampla permite perceber certas recorrências em relação à visão que se tem da História, dos historiadores, da historicidade e da historiografia.

As questões, colocadas na forma de tópicos, se dividem em procedentes e improcedentes, sendo que no último grupo podemos delimitar certos eixos:
a) temas enciclopédicos: perguntas sobre minúcias e particularidades de fatos e personagens;
b) futurologia: manifesta-se em questões do tipo “como a história irá ver tal evento contemporâneo ou passado dentro de algum tempo” e outros do mesmo naipe;
c) o maior, o melhor e o pior: tentativa ingênua de estabelecer um gradiente comparativo entre presidentes, historiadores, sistemas econômicos e políticos, personagens, etc. ;
d) dúvidas escolares: que vão desde a solicitação da solução comentada de um exercício de vestibular ou concurso, passando pela solicitação de bibliografia sobre determinado tema, e terminando em pedidos de trabalhos escolares por parte de alguns espertinhos/vagabundos;
e) questões “gnômicas”: miscelânea que reúne representantes de teorias conspiratórias, simpatizantes da ufologia, revisionistas anti-semitas, criacionistas, entre outros grupos cujo mote é “Eu QUERO acreditar!”.

A crença de que os historiadores são dotados de uma memória infinita é ilusão cultivada por leigos e alimentada por alguns professores que na busca de admiração desfilam de forma pirotécnica seus arsenais de curiosidades e datas importantes. Na realidade essa crença é desafiada por duas limitações insuperáveis: a natureza do conhecimento historiográfico, que é por definição cumulativo e parcial, ou seja, sempre está sendo ampliado e nunca é definitivo, e o diálogo da História com os demais ramos do conhecimento, que se dá em uma velocidade e profundidade incapaz de ser acompanhado de forma completa por qualquer ser humano – segundo especialistas são introduzidas na Internet cerca de um milhão de novas home-pages por dia, os melhores instrumentos de busca na Internet só acessam cerca de 40% de seu real conteúdo, e o conhecimento humano dobra a cerca de cada cinco anos, o que transcende a capacidade de retenção mesmo de computadores poderosíssimos. Portanto, em caso de curiosidade legítima – porque existe a curiosidade cruel, quando na sala de aula, p. ex., o aluno pergunta apenas para ver se o professor reconhece que não sabe a resposta – sugiro usar um bom instrumento de busca na mesma Internet e consultar uma boa enciclopédia para sanar questões pontuais do tipo “qual era o nome do cavalo de Napoleão?” (mesmo porque o imperador teve dezenas de cavalos, muitos com nomes repetidos...). Aliás,, no próprio ORKUT tem uma comunidade chamada “Historiador não é enciclopédia”.

A futurologia encontrou seu ápice em escritores como Alvin Toffler (autor de A Terceira Onda ou O choque do Futuro, entre outros), que se tornou milionário pela curiosidade que o público tinha sobre as possibilidades de mudança na sociedade industrial contemporânea, mas é mais uma forma de literatura do que uma ciência. Quando um historiador fala algo sobre o futuro (o que vale também para questões do tipo “e se...?”) o faz enquanto cidadão/indivíduo/pessoa e expõe suas crenças e perspectivas pessoais, de forma totalmente subjetiva, ou seja, são opiniões e não certezas que estão sendo expostas, mesmo porque o objeto da História é o passado e não o futuro. Mesmo certos setores do mercado editorial estrangeiro exploram o filão da “história do futuro” ou da “história conjectural”, em que se escrevem obras sobre como teriam sido as conseqüências para a nossa sociedade se algum fato significativo fosse alterado, mas são devaneios literários, uma experiência estética com forte relação imaginária entre certas causas e seus efeitos, bem distantes de um exercício de raciocínio historiográfico. Portanto a resposta obtida na comunidade de História ou História do Brasil sobre como o futuro verá o governo Lula, p. ex., tem a mesma legitimidade de uma obtida na comunidade “Torcedores do Tabajara Futebol Clube”...

Maior, melhor e pior são adjetivos que permitem expressar a subjetividade de quem os usa, o que pode ser interessante mais para nos informar sobre aquele que fala do que sobre aquilo que se fala... um gradiente comparativo entre presidentes, historiadores, sistemas econômicos e políticos, personagens históricos, exércitos, entre outros aspectos históricos tem a mesma legitimidade que a discussão entre torcedores de diferentes times sobre qual deles é o melhor (oportunidade em que podemos exercitar nossa compaixão para com aqueles infelizes que são incapazes de torcer pelo mesmo esquadrão que escolhemos!), mas é só. A vantagem de discutir futebol ao invés de história, nesse contexto, é que no primeiro caso o local permite variações em que o álcool etílico, as conversas paralelas, gritos e urros não vão macular a questão da legitimidade da discussão, enquanto historiografia de boteco é uma contradição em termos (assim como sociologia ou política de boteco também o são!).

A aproximação de pessoas e a troca de informações são os grandes méritos da internet, sendo que para alguém que nasceu antes da década de 80 a sua utilização representa de forma clara uma ruptura em relação às experiências anteriores de mesma natureza. A aprendizagem e a pesquisa a partir da Internet, por sua vez, ganharam novos métodos e novas dimensões, criando a oportunidade inovadora de aproximar de forma ágil e intensa pessoas que desejem compartilhar seus conhecimentos – ao mesmo tempo em que criou dois problemas graves: a coexistência no mundo virtual de sites sobre o mesmo assunto que oscilam entre a excelência em qualidade e a mediocridade explícita, e a especialização de pessoas e empresas dedicadas a produção em série de trabalhos escolares e acadêmicos, assim como a facilitação do plágio. No entanto, os aspectos positivos superam em muito os negativos, e as mesmas ferramentas que possibilitam a disseminação de informações incompletas ou inexatas, assim como as fraudes escolares e acadêmicas, também podem permitir a sua constatação, bastando um clique de mouse para checar uma informação ou verificar a originalidade de um trecho de texto. Dias melhores virão...

Finalmente a categoria mais polêmica, e que desperta embates acalorados: as questões “gnômicas”. São chamadas assim, pelos fundadores da comunidade História, aqueles tópicos em que geralmente diletantes, carentes de informação de natureza científica, apresentam teorias equivocadas e/ou conspiratórias para negar certos conhecimentos históricos consensuais (em um amplo leque que vai da afirmação da existência dos deuses astronautas e sua herança nas civilizações da antiguidade oriental até a factualidade histórica do livro O Código Da Vinci, passando pela veracidade inquestionável de todos os relatos bíblicos). Bernard Shaw afirmou certa vez que o ser humano não suporta doses muito maciças de realidade, necessitando portanto de certas ilusões conscientes e inconscientes, e Carl Sagan escreveu um belíssimo livro (O Mundo assombrado pelos Demônios, Companhia das Letras) sobre a credulidade em explicações irracionais nessa mudança de milênio. Os casos mais graves, no entanto, não são fruto somente da desinformação, mas também da falta de caráter, sendo significativo o número de manifestações sexistas e racistas em tópicos que invocam o evolucionismo social, a xenofobia, a misoginia, o anti-semitismo, entre outras bases como justificativas para demonstrações de preconceito, intolerância e problemas psíquicos. Enfim, ao lado daqueles que necessitam de informação e orientação existem outros que são casos mais graves, de natureza patológica ou criminosa, sobre os primeiros temos que reconhecer que todos somos ignorantes, embora sobre coisas diferentes, e os últimos ter a tranqüilidade de que tais casos não são contagiosos!.

Portanto, para a questão inicial de que se é possível encontrar-se História para ser apreciada e aprendida no ORKUT, deve-se responder que como a Internet e o ORKUT são ambientes públicos e amplos, a variedade de referenciais é esperada e inevitável, sendo necessário, assim como a todo conteúdo disponível na rede, que o interessado utilize seu senso crítico e o maior cruzamento possível de informações para não ser prejudicado pro uma visão parcial ou equivocada de qualquer questão. Como nesse caso, ao contrário do senso comum, a curiosidade pode oferecer surpresas agradáveis ao encontrar-se em certas comunidades mais especializadas e com número menor de membros ajuda qualificada e companheiros de interesses, recomendo que busque entre bites e bytes essas oportunidades. Divirtam-se!

(Artigo publicado em Pronto! Revista de Cultura [ http://www.revistapronto.com.br/ ], em 18/07/2006; ilustração Foto de Heródoto e Tucídides, retocada por Mi Ojo Viejo)