Mi Ojo Viejo

Mentiras lindas em palavras lindas, preparadas no calor da hora, temperadas com idéias rápidas para se saborear sem pressa...

31.8.06

Os prazeres viciosos.

Entre os meus vícios eventuais está o de me perder entre prateleiras e pilhas de livros em sebos em diferentes cidades que visito, namorando títulos esparsos, buscando um ou outro objeto de desejo e enfrentando um exército de ácaros de diferentes patentes e procedências . Em um desses exercícios de curiosidade bibliofílica esbarrei com um pequeno mas importante livro, com o título acima, de autoria do Prof. Dr. William Drauger, editado pela Livraria e Editora Antônio de Carvalho, de São Paulo, sem data, mas que nos alerta que tal volume faz parte de coleção sobre temas sexuais com “obras de caráter rigorosamente científico-privado, destinado as pessoas de maioridade que desejem se esclarecer melhor sobre os assuntos relacionados com a vida sexual”. As décadas que nos separam da edição do livro são capazes de causar grandes surpresas, em uma mistura de riso e espanto, como por exemplo quando o autor nos avisa da relação direta entre a prática da masturbação e o surgimento de diferentes formas de loucura (embora no século XIX Oscar Wilde houvesse dito que tal prática era uma forma de sexo vantajoso por ser mais limpo, prático e sempre praticado com alguém de classe!).

A coleção seria formada por cinco volumes que parecem indispensáveis para uma vida sexual saudável e regrada. O primeiro, Conselhos a um jovem esposo, com o útil subtítulo de “O comportamento sexual do homem na primeira noite de núpcias”, de autoria do médico A. Martin de Lucenay, autoridade científica sobre pudor, jogo amoroso, zonas erógenas e conselhos morais se mostra imprescindível para o início correto da vida marital, sendo temerário imaginar os riscos de depravação que correriam aqueles que não se informassem suficientemente. O segundo, A ciência das carícias, do mesmo autor, que amplia as demonstrações de seus conhecimentos e habilidades ao se oferecer para ampliar as práticas táteis dos interessados, dentro dos limites das práticas privadas que seriam socialmente aceitáveis. O terceiro volume, Os prazeres viciosos, título já citado, que possui o sugestivo subtítulo de “Perversões e aberrações sexuais, suas causas, seus remédios”, oferece uma lista que classifica dezenas de taras e parafilias (com enorme destaque para a masturbação e a homossexualidade!) além de discutir causas e tratamentos. O quarto, A Força Viril, do Dr. Franz Keller, promete oferecer conselhos para não só se conservar a virilidade até idade avançada, como também de recuperá-la depois de abusos, enfermidades e outros males. E finalmente,o quinto, A Mulher no Amor e na Voluptuosidade, do Dr. E. Tairens Draga, que permite ao leitor identificar os elementos que compõe a beleza feminina, assim como diferenciar como desfrutar o amor natural das mulheres e impedir a manifestação de suas depravações, elencando inclusive diversos exemplos de mulheres voluptusosas ao longo da história.

Em meio ao cômico e do non-sense de algumas das afirmações e promessas dos autores e do editor, inevitavelmente se sente, entre o cheiro do papel velho e dos ácaros, a presença do temor frente ao sexo que caracterizavam as abordagens tradicionais da sexualidade antes da Revolução Sexual dos anos 60, colocando a medicina como avalista de uma abordagem moral do tema. Os cinco volumes (embora deva confessar minha especial curiosidade pelo de número quatro – aquele sobre a força viril – na esperança de que as famosas pílulas azuis não sejam a única opção para aquele momento futuro em que o trabalho começa a dar imenso prazer e o prazer, imenso trabalho!) hoje são apenas parte de um retrato curioso de uma época, que permite perceber a origem e a sobrevivência de alguns preconceitos, assim como constatar a superação de outros.

Se a sexualidade alimentou e alimenta a industria editorial de forma significativa a algumas décadas, na historiografia brasileira, no entanto, o tema da sexualidade não é um dos mais referenciados, ocupando uma posição secundária dentro dos cânones e do ambiente acadêmico – o que é de se lamentar com toda a certeza!

Entre os clássicos da historiografia brasileira, encontramos em Paulo Prado (Retrato do Brasil: Ensaio sobre a Tristeza Brasileira, Companhia das Letras), em texto de 1928, uma primeira abordagem do tema, o que ocorrerá de forma mais recorrente na obra de Gilberto Freyre (Casa Grande e Senzala e Sobrados e Mucambos), obras de 1933 e em suas descrições sobre a vida sexual nos engenhos, retomado-o em diferentes momentos da produção intelectual do autor.

Na década de 80 e início da de 90, em paralelo ao fortalecimento dos movimentos sociais de mulheres e homossexuais, trabalhos pioneiros passam a ganhar destaque, como os trabalhos do antropólogo Luiz Mott, da UFBA, sobre a sexualidade no Brasil Colônia (O sexo proibido: virgens, gays e escravos nas garras da Inquisição, Editora Papirus), Ronaldo Vainfas (Trópico do Pecado, Campus), Angela Mendes de Almeida (O Gosto do Pecado: casamento e sexualidade nos manuais de confessores dos séculos XVI e XVII, Rocco), Margareth Rago (Os Prazeres da Noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em S. Paulo, 1890-1930, Paz e Terra) e Ligia Bellini (A Coisa Obscura: mulher, sodomia e Inquisição no Brasil Colonial, Brasiliense), entre outros.

Hoje os temas como Gênero, Corporalidade e Sexualidade são recorrentes dentro da Antropologia, área das ciências sociais que tem mantido um maior diálogo com a historiografia, e talvez isso possibilite tanto a ampliação do interesse dos historiadores como a inovação de abordagens e enfoques dentro de tais temas, para alegria dos estudiosos, dos diletantes e dos curiosos.

(Artigo publicado em Revista Pronto de Cultura [ www.revistapronto.com.br ], em 07/07/2006; ilustração "O Fenômeno do Êxtase", de Salvador Dali.)