Mi Ojo Viejo

Mentiras lindas em palavras lindas, preparadas no calor da hora, temperadas com idéias rápidas para se saborear sem pressa...

9.9.06


Essas mal traçadas linhas...

“Bem quisera escrevê-la com palavras sabidas, as mesmas, triviais, embora estremecessem de paixão. Perfurando os obscuros canais de argila e sombra, ela iria contandoque vou bem, e amo sempre e amo cada vez maisi, a essa minha maneira torcida e reticente, e espero uma resposta...” Assim, em um poema chamado Carta, Carlos Drummond de Andrade falava sobre esse ato de estabelecer uma ponte entre pessoas através da palavra escrita, pessoal e íntima, que é a correspondência.

Em tempos de e-mails a carta perde espaço, pois a ligeireza e o instantâneo da mensagem eletrônica parece mais atrativo do que a espera e o tempo passado da correspondência postal. A própria palavra “correspondência” traz em si uma conotação de reciprocidade, similitude, proximidade, que as trocas postais só fazem ampliar, nas quais, quer pela convergência ou divergência, os missivistas se igualam, colocam-se em um mesmo patamar de legitimidade que permite o escambo de opiniões, afetos, ofensas, informações, segredos, e todo o conjunto de sentimentos e conhecimentos que podem ser traduzidos na linguagem escrita. Enquanto as cartas podem levar consigo a esperança de que sejam guardadas os e-mails são escritos para serem apagados... (Rubem Braga, com aquela mistura de leveza e melancolia que caracterizam seus textos, tem uma bela crônica em que fala sobre um pacote de cartas antigas que encontra no fundo de uma gaveta e que relê, percebendo que se algumas coisas ditas ainda fazem sentido, outras, que pareciam tão urgentes, foram esquecidas... e guarda novamente o pacote, desejando que as pessoas que fizeram parte daquela correspondência também tenham o mesmo carinho pelo quinhão que lhes cabe nas trocas postais! Em relação aos e-mails me parece impossível tal cena...)

A pesquisa dedicada à cartas e diários tem se ampliado significativamente na historiografia brasileira, com a produção de trabalhos bastante relevantes sobre épocas, personagens, situações e contextos a partir do universo íntimo e pessoal contido nesse tipo de fonte. Embora a correspondência ou o diário sejam feitos para a intimidade, e o interesse que despertam possa despertar o voyeurismo do leitor, são fontes ricas para se desvendar subjetividades do remetente e do destinatário (assim como dos grupos sociais e culturais aos quais se vinculam e mesmo do autor da análise, um cúmplice do diálogo!), além de recuperar partes do passado e formas de construção da memória, principalmente quando se torna possível o acesso as mensagens tanto enviadas quanto recebidas (chamadas de correspondência “ativa” e “passiva”, respectivamente).

A poeta Ana Cristina César, que teve parte de sua correspondência publicada, diz em uma delas que "cartas e biografias são mais arrepiantes do que a literatura", porque deve perceber que se a literatura é a arte de se contar coisas da vida, as cartas e os diários trazem cicatrizes dessas coisas que não foram resultado da arte, mas da vida.

Coletâneas de “escritas de si” tem ocorrido com bastante constância no mercado editorial, estando disponíveis nas livrarias atualmente, entre outras, a Correspondência de Euclides da Cunha (EDUSP), A correspondência de uma estação de Cura (de João do Rio, Scipione), Correspondências (de Clarice Lispector, Rocco), Mário de Andrade e Manuel Bandeira (EDUSP), Correspondência (de Machado de Assis e Joaquim Nabuco, Topbooks), Correspondência Mário de Andrade e Tarsila do Amaral (EDUSP), entre outros.

Em termos analíticos a coletânea Escrita de Si, Escrita da História (Editora FGV), organizada por Ângela de Castro Gomes, oferece um rico panorama de trabalhos que se dedicam ao estudo da correspondência (além de diários íntimos e memórias) de notáveis, notórios ou não notados – abordando a “escrita de si” de pessoas como Antônio Pereira Rebouças (homem negro e auto-didata que se tornou um dos maiores civilistas do Direito brasileiro), de Oliveira Lima (sociólogo e jurista fundamental dentro do pensamento social brasileiro) , do sociólogo Gilberto Freyre (que publicou inclusive, entre seus diversos livros, um sobre algumas de suas cartas), Monteiro Lobato (que para além do autor infantil deve ser lembrado como romancista, empreendedor, polemista e autor da clássica reunião de algumas de suas cartas, A Barca de Gleyre), Paulo Prado (milionário paulista que além de empresário e mecenas, foi bom escritor e descrito por Eça de Queiroz como um modelo da perfeição humana), o historiador Capistrano de Abreu (um dos pais da moderna historiografia brasileira), Getúlio Vargas (que dispensa qualquer explicação), entre outros.

Tal tipo de produção bibliográfica, tanto de natureza acadêmica quanto comercial, deve se manter em constante renovação, sendo que o interesse que desperta torna explícito um dos grandes encantamentos que a História exerce sobre as pessoas: um indivíduo pode não ter nenhum dom artístico, literário ou musical, mas está emaranhado em uma memória sua e da sociedade da qual faz parte, o que lhe permite o seu reconhecimento enquanto unidade e também parte de um todo, de modo a poder dizer “eu vivi”, “eu vi” e “eu me lembro”, e isso é possível de ser compartilhado. Isso que justifica o trabalho do historiador.

Artigo publicado em Pronto! Revista de Cultura [ http://www.revistapronto.com.br ], em 02/08/2006, ilustração Cartão de Peregrinação por Santiago de Compostela.