Mi Ojo Viejo

Mentiras lindas em palavras lindas, preparadas no calor da hora, temperadas com idéias rápidas para se saborear sem pressa...

2.9.06

É preciso ser pobre ou preciso ter raça?

Um dos momentos memoráveis da televisão brasileira ocorreu quando Marcelo Tas, interpretando seu repórter-personagem Ernesto Varela, perguntou ao senhor Paulo Maluf se o povo não gostava dele por causa das acusações de corrupção e o político respondeu que o povo sabia que ele era um empreendedor e gostava muito dele... o repórter então perguntou: “Dr. Maluf, o senhor acredita que eu acredito que o senhor acredita nisso que me respondeu?”
Infelizmente a arte da desconfiança geralmente só é utilizada quando nos defrontamos com algo que contraria nossas convicções e valores, e o questionamento se torna veemente mais pelas crenças do que pelo conhecimento. (Millôr genialmente definiu essa situação a partir dos livros: "Não ligo se o escritor / É leviano ou denso, / Nem me importa se o livro / É pequeno ou imenso / Eu gosto é de autor / Que pensa o que eu penso.")
A universidade brasileira agitou-se recentemente devido ao debate sobre os projetos da lei de Cotas (PL 73/1999) e do Estatuto da Igualdade Racial (PL 3.198/2000), o que é sintomático da importância do tema para essa instituição e seus membros, e positivo para a sociedade como um todo que vê com maior clareza a participação de seus intelectuais, manifestando-se favorável ou contrariamente ao tema. (Os dois manifestos, a favor e contra tal iniciativa, estão disponíveis em http://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u18773.shtml .)
O filósofo Chaim Perelman (autor de Retóricas e de Tratado da argumentação: a nova retórica, ambos editados no Brasil pela Martins Fontes) identifica a retórica como uma técnica discursiva capaz de provocar a adesão através do raciocínio, criando um significativo consenso, o "acordo", que não é conseqüência da verdade, mas sim da legitimação de propostas consideradas justas, eqüitativas, razoáveis, honrosas ou conforme o direito, de tal forma que uma tese pode ser admitida ou afastada porque é ou não oportuna, socialmente útil, justa ou equilibrada.
Logicamente que a chance de sucesso na obtenção desse "acordo” depende do reconhecimento pelo “orador” das idéias, concepções e valores admitidos por seu “auditório” (público),e que usadas como pontos de apoio para sua argumentação permitem buscar a adesão através das técnicas de oratória.
Embora uma mesma ação, por exemplo, possa ser descrita como o ato de apertar um parafuso, montar um veículo, ganhar a vida ou favorecer o fluxo de importações, o orador busca explicá-la de acordo com a percepção do auditório, estabelecendo relação direta entre fato e uma de suas interpretações, relegando as demais ao ocultamento.
Assim, podemos entender os manifestos a favor e contra a Lei das Cotas e o Estatuto da Igualdade Racial como peças de retórica, tentativas de convencimento, que possuem um “orador” e um “auditório”, propõem um “acordo” e se baseiam em certas idéias, concepções e valores.
Embora ambos os lados possam não concordar sobre a definição que proponho, entendo que o orador pró-cotas é o “Movimento Negro” (rótulo usado na falta de algo melhor, para definir parte de um movimento social com divisões internas, diferenças ideológicas e outras particularidades que qualquer rótulo encobre, assim como aliados diversos) e o anti-cotas é a “Universidade” ( rótulo com a mesma limitação da anterior), e que vão buscar adesões em setores próximos às suas perspectivas, e o auditório é composto pelo Congresso Nacional e a “Sociedade Brasileira” (entendida como a opinião pública e os setores organizados que ainda não se posicionaram sobre o debate).
O “acordo” proposto se liga à aceitação ou rejeição do processo de racialização do debate sobre a exclusão social e a oficialização desse referencial, uma vez que os pró-cotas entendem que a sociedade brasileira é racializada (divididas em raças no seu cotidiano, que cria diferenças em termos de oportunidades) e que a adoção de critérios raciais seria um caminho imprescindível para superar desigualdades, e os anti-cotas redimensionam a questão racial afirmando que oficializar a racialização não atende plenamente a questão social e cria precedentes para acentuar conflitos raciais, ao invés de superá-los.
As idéias, concepções e valores apelam para a dívida histórica, a justiça social, a obrigação moral, o ideal republicano, a igualdade jurídica, entre outros.
O “Movimento Negro”, influenciado por perspectivas de certas vertentes da militância de seu correlato norte-americano, não só luta pela afirmação da negritude como entende ser necessário, em termos de estratégia política, a racialização (como pode se perceber pelo lema dos 4 Pês – “Poder para o povo preto”).
Em polêmico artigo dos sociólogos Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant, intitulado “Sobre as Artimanhas da Razão Imperialista”, é feita uma forte critica a adoção da perspectiva norte-americana pelo movimento negro no Brasil, sendo que a Revista de Estudos Afro-Asiáticos (Vol 24, no. 1, 2002) organizou um dossiê com o artigo e com a discussão sobre às suas colocações por Jocélio Teles dos Santos, Edward Telles, John French e Michael Hanchard (os artigos estão disponíveis em http://www.scielo.br/ , bastando procurá-los pela revista – Estudos Afro-Asiáticos, ou pelo assunto e autor – Bourdieu).
A questão da racialização, portanto, é o pomo de discórdia do debate, quer isto esteja explícito ou não.
Mas porque a Universidade se manifesta com veemência contra a questão das cotas? As razões são diversas: primeiro, porque embora o processo seletivo através do vestibular sempre tenha sido objeto de críticas (tanto pelo seu aspecto formalístico como pelo elitismo dos sistemas pré-vestibulares) ainda desfruta de certa legitimidade por teoricamente selecionar por mérito; segundo, o receio de que a introdução de indivíduos com uma formação escolar deficitária sobre o montante considerado mínimo necessário para acompanhar os estudos de graduação comprometeria o processo de ensino aprendizagem ou criaria um ônus a mais para a universidade (através da necessidade, à exemplo do que têm feito faculdades privadas – onde geralmente existem mais vagas do que candidatos nos processos seletivos, da criação de mecanismos de nivelamento, como cursos extras com conteúdos do ensino médio para que os ingressantes possam acompanhar as aulas do ensino superior); terceiro, porque a Universidade pública brasileira vem sendo sucateada ao mesmo tempo em que é obrigada a adotar compromissos assistencialistas por causa da omissão do Estado (de seu minguado orçamento não só é obrigada a manter o ensino, a pesquisa, a gestão e a extensão, como prestar serviços à sociedade - como clínicas médicas e odontológicas, entre outros - além de oferecer moradia, ajudas de custo, alimentação e transporte na forma de bolsas de caráter social para parte de seus alunos), sendo vitimada por iniciativas demagógicas, populistas e inconseqüentes de seguidos governos; quarto, porque o conceito de “raça” é uma construção social cuja utilização se liga a diferentes fins políticos, sociais e econômicos (muitas vezes para desqualificar um grupo social específico e justificar a supremacia de outro) e a adoção de um critério oficializado pelo Estado brasileiro de classificação racial é entendido como uma temeridade por suas conseqüências; e finalmente, porque embora um significativo número de seus membros aceitem as cotas, ou mesmo as defendam (grupo no qual eu me incluo!), entendem que estas devam obedecer critérios sócio-econômicos, como origem, local de residência, renda familiar e acesso a bens e serviços considerados universais.
O “Movimento Negro”, por sua vez, não aceita a sobreposição da questão social à questão racial, ou seja, a adoção de critérios sócio-econômicos ao invés de raciais (embora estudos mostrem claramente aquilo que na constatação empírica um cantor baiano notou: “como é que pretos, pobre e mulatos e quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados...”), porque isso não reverteria em fortalecimento de sua identidade – a inclusão de “pobres” não é a inclusão de “negros”, mesmo quando esses negros são pobres!
Em uma questão sem fim sugiro três livros que podem enriquecer o debate: uma coletânea organizada por Cláudia Barcellos Rezende e Yvonne Maggie, chamada Raça como retórica: a construção da diferença (Civilização Brasileira), em que se discute esse conceito e suas implicações, e um livro ainda não publicado no Brasil, do antropólogo John Burdick, Blessed Anastacia (Routledge), que propõe analisar a construção da identidade racial através da prática religiosa (o culto à escrava Anastácia e as religiões pentecostais) e do recorte por gênero, e não pelo viés político, o que marca sua originalidade e valor,e finalmente, As funções da retórica parlamentar na Revolução Francesa (UFMG), de Hans Ulrich Gumbrecht, que discute as diferenças entre o que se diz e o que se quer dizer na política através de um exemplo histórico bastante conhecido.
No século XIX era comum no Rio de Janeiro uma criança negra encontrar um parente mais velho e lhe pedir a benção, ouvindo em resposta: “Que Deus lhe branqueie!” Imaginando que ao invés de raça devamos pensar em culturas e em suas infinitas contribuições quando dialogam e permitem superar tensões, parafraseio o cantor Itamar Assumpção: Que Deus nos preteje!


Artigo publicado em Pronto! Revista de Cultura [ http://www.revistapronto.com.br/ ], em 25/07/2006