Mi Ojo Viejo

Mentiras lindas em palavras lindas, preparadas no calor da hora, temperadas com idéias rápidas para se saborear sem pressa...

8.9.06


Os Doutores Advogados.

Pero Lopes de Sousa foi um importante navegante português do século XVI, que participou de diversos episódios da História do Brasil a partir de sua descoberta, como a fundação das vilas de São Vicente e Piratininga, os descobrimentos do Rio de Janeiro, do Rio da Prata e da ilha de Fernando de Noronha. Um de seus menos conhecidos feitos foi o resgate, em 1531, de um naúfrago ou degredado que ficou conhecido como o Bacharel de Cananéia, pois se identificou como doutor em leis e afirmou já viver entre os índios há 30 anos.

Este bacharel, misto de figura histórica e mito (tanto que recebe a visita literária de Macunaíma, no romance de Mario de Andrade) não só é um sinal da cultura européia perdida nos trópicos como marca a aparição em terras brasileiras de um profissional que ao longo dos séculos seguintes se tornará motivo de respeito e despeito, além de um guardião burocrático e peça fundamental da organização política e administrativa da vida colonial, monárquica e republicana.

Paralelamente ao prestígio e poder gozado pelos bacharéis ao longo da história surgiu um movimento de resistência simbólica de diferentes grupos contra seu destaque na sociedade brasileira, como nos versos de Gregório de Matos (“Valha-nos Deus, o que custa, / O que El_rei no dá de graça, / Que anda a justiça na praça / Bastarda, Vendida, Injusta”), no relato do jesuíta André João Antonil que no Cultura e Opulência do Brasil, de 1711 (que adverte os proprietários rurais para “evitar demandas e pleitos que são uma contínua desinquietação d’alma e um contínuo sangrador de rios de dinheiro, que vai entrar nas causas dos advogados, solicitadores e escrivães, com pouco proveito de quem promove o pleito”), ou na quadrinha popular, de finais do século XIX (“Quando Deus voltou ao mundo, / Para punir os infiéis, / Ao Egito deu gafanhotos, / Ao Brasil deu bacharéis”), entre outros exemplos possíveis – ainda hoje, ao lado dos portugueses, das bichas e dos papagaios, entre outros menos votados, os advogados são um dos temas recorrentes que povoam as listas de piadas disponíveis na internet. (O sociólogo Peter Berger lamentou certa vez a inexistência de piadas sobre a sua profissão, identificando nesse tipo de manifestação uma forma de visibilidade social, ou, dizendo de outra forma, às vezes é melhor ser vaiado em seu Audi TT do que aplaudido no ônibus Mercedes de uma empresa de transporte urbano!)

Diversos autores analisaram a inserção dos bacharéis na vida intelectual e política brasileira, objeto de historiadores, sociólogos e juristas, sob diferentes orientações teórico-metodológicas, como em livros ou capítulos de Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freire, Maria Isaura de Queiroz, Raimundo Faoro, Fernando Uricochea, José Murilo de Carvalho, entre outros, o que mostra a visibilidade conquistada pelo grupo tanto política como socialmente.

As origens dessa aura de poder e prestígio que cercam os advogados se liga ao período colonial quando as elites enviavam seus filhos para a Universidade de Coimbra, em Portugal, e às vezes, Montpellier ou Paris, na França, para que ampliassem suas formações intelectuais e conquistassem o grau de bacharel, que na realidade se mostrava como um atestado de cultura literária e abstrata capaz de colocar ao alcance do interessado cargos profissionais e burocráticos.

Com a instauração das Faculdades de Direito de Olinda/Recife e São Paulo, em 1827, essa formação passa a ser feita no país, embora sob influência do modelo português, mantendo o mesmo prestígio, a partir da carga simbólica e das possibilidades políticas que se apresentavam aos profissionais de direito, que alcançavam os postos de ministros, senadores, governadores e deputados, além de que muitos se convertiam em influentes pensadores sobre os destinos do país ou monopolizadores dos debates intelectuais da sociedade local.

Escrever sobre esses profissionais é enfrentar um grande desafio, pois o destaque que obtiveram em diferentes momentos da vida pública brasileira e as questões de fronteiras entre as áreas do conhecimento que despertam surgem como obstáculos de extensão e de profundidade. Não é caso isolado a dificuldade de diferentes áreas das ciências humanas sentirem dificuldade em trocar elementos com o campo jurídico e acabarem se distanciando do tema ou produzindo estudos incompletos, enquanto diversos estudos jurídicos se mostram incapazes de dialogar com as ciências humanas e se convertem ao reducionismo institucional ou, pior ainda, ao simples proselitismo forense – com aquela chuva de adjetivos e citações latinas que caracterizam essa tradição da qual Rui Barbosa é uma figura de referência. (Um autor de livro didático sobre sociologia jurídica afirma na apresentação do mesmo que os trabalhos na área, com poucas exceções, tendem a ser como o Sacro Império Germânico, que apesar do nome não era nem Sacro, nem Império, e nem Germânico... e talvez isso ocorra em diversas áreas fronteiriças!)

Entre os destaques positivos recentes da Sociologia e da História que se dedicaram ao tema gostaria de destacar os livros de Edmundo Campos Coelho, Keila Grinberg e Eduardo Spiller Pena. Os historiadores Eduardo Pena (Pajens da Casa imperial: jurisconsultos, escravidão e a lei de 1871, Editora da UNICAMP) e Keila Grinberg (O Fiador dos Brasileiros: cidadania, escravidão e direitos civis no tempo de Antônio Pereira Rebouças Civilização Brasileira), discutem, respectivamente, a importância político-administrativa dos bacharéis no Segundo Reinado e os impasses que a ordem escravocrata colocavam para o ordenação jurídica da época e a trajetória pessoal e profissional um mulato auto-didata que se tornou um dos maiores civilistas do século XIX, em meio às contradições sociais e institucionais do escravismo brasileiro, enquanto o sociólogo Edmundo Coelho (As Profissões Imperiais: Medicina, Engenharia e Advocacia no Rio de Janeiro, Editora Record) faz um retrato extremamente minucioso e interessante sobre a implementação do mercado de trabalho jurídico na capital do país durante o século XIX e início do XX, apontando os conflitos e desafios que os bacharéis enfrentaram na institucionalização de sua profissão – esse último, além da qualidade acadêmica, pela amplitude das pesquisas e capacidade de análise também presente nos outros dois autores tem um estilo de escrita extremamente agradável, livre de certos vícios da linguagem acadêmica!).
Ao mesmo tempo em que a história deseja ampliar seus temas, suas fontes e seus métodos, o campo jurídico no Brasil se oferece como rara oportunidade para tanto, pelo que se refere às instituições, aos grupos e aos indivíduos nele envolvidos, assim como pela volumosa massa documental acessível e manejável. Ganhos reais na análise do historiador podem se derivar na inevitável institucionalização e burocratização dos ritos jurídicos, assim como na crescente necessidade de refinamento da historiografia produzida por membros do judiciário e pelo interesse despertado por uma área do conhecimento que congrega cerca de 800 cursos universitários no país, com 750 mil alunos aproximadamente (segundo os dados mais recentes do MEC). (Aliás, esse excesso de cursos e alunos também tem suas causas estranhas e histórias desconhecidas, que não são castigos bíblicos, mas somente manifestações de fariseísmo - e mesmo que não sejam uma praga de gafanhotos, já são um enxame de bacharéis ou um vexame educacional, mas isso é uma outra estória...).

Artigo publicado em Revista Pronto de Cultura [ http://www.revistapronto.com.br/ ], em 31/08/2006, ilustração charge "Como reconhecer um futuro advogado."