Mi Ojo Viejo

Mentiras lindas em palavras lindas, preparadas no calor da hora, temperadas com idéias rápidas para se saborear sem pressa...

3.11.07


ANPOCS 2007.

E eu, moço humilde e raso, que acho teatro um tédio, fui convidado a participar de uma montagem, dentro de um casa de espelhos (com todas as multiplicidades e distorções características) de uma versão bufa de "Os Reis Taumaturgos" do Marc Bloch - foi dor sem fim... Os reis e seus séquitos trocavam palavras, risos e olhares que pareciam querer produzir "o congraçamento de feras usualmente hostis entre si, a incomum transparência dos rios, e a emanação sobrenatural de fragrâncias por árvores e plantas", "a alegria dos Upanishads" e "os jubilosos peãs de toda a milícia celeste"... risos... e prá assitir tudo isso, a bebida não era boa o suficiente e os amigos eram bons, mas muito poucos!

O maior e mais importante evento de Ciências Sociais no Brasil não poderia deixar de ter o que há de mel e de fel na área...

Do mel: o evento é um retrato vivo e completo do estado da arte ao mesmo tempo em que se converte em uma vitirne importante para mostrar o que se produz e travar contato (para possíveis trocas futuras) com quem produz... e pelo número de vezes em que foi organizado e que acontece no mesmo local é algo muito bem organizado em termos de estrutura física e humana (embora o inchaço crie oscilações significativas entre as instalações dos ST's).

Do fel: o mundo acadêmico intelectual, como muitos outros campos, é extremamente auto-referenciado e dono de um nível de vaidade e arrogância assustadores... pensadores e autores querem ser reconhecidos, terem valorizadas suas contribuições, influenciarem os neófitos e se legitimarem frente aos outros pensadores e autores... no entanto, essa prerrogativa - que alguns anos atrás era resultado de uma vida dedicada à pesquisa - hoje é reivindicada por quem é e por quem nunca sera "bibliografia", dentro de um certo produtivismo característico da "Geração Lattes" (base de dados do CNPQ que agrupa curriculos acadêmicos, permitindo crescentes comparações quantitativas) e que, no evento, produziu o maior desfile de pessoas jurídicas, alpinistas acadêmicos e outras aves de mesma plumagem (envolvidos em um complexo ritual de reconhecimento e confraternização com lances de fofocas suburbanas, poses estudadas e frases feitas e vazias) que eu já presenciei - tto em quantidade como em intensidade.

Ao teatro desses rituais soma-se as rivalidades e confrarias - porque mesmo que o nível de vaidade per capita seja enorme como em muitos outros lugares e eventos (afinal quem tem certa disciplina e intelecto, se não tem esse tipo de vaidade pode ser Fiscal de Renda da Receita Federal!) a própria estrutura da área com suas divisões de área entre Ciência Política, Sociologia e Antropologia (além das sub-áreas internas) maximizam os estranhamentose as disputas - no qual a junção de tantas estrelas, cometas, asteróides e poeira cósmica em um espaço tão reduzido é uma temeridade.

No entanto me parece interessante assinalar duas distorções que a "Geração Lattes" vem produzindo, decorrentes do mesmo processo de pressão em prol de uma produção quantitativamente expressiva.

A primeira é a multiplicação de artigos e "papers" que mantém a mesma estrutura ou conjunto de idéias, com pequenas alterações, mas que se repetem continuamente em publicações e congressos - em um jantar uma jovem pesquisadora me disse que a publicação de dois artigos por ano sobre seu objeto de estudo seria uma produção muito pequena e eu lhe perguntei, mezzo malícia, mezzo espanto, quanto de leitura e reflexão consumiria um artigo realmente original uma vez que a produção sistemática de artigos poderia se converter em um entreglosar e autoglosar infinitos, e fiquei sem sua resposta mas recebi um olhar mezzo desprezo, mezzo irritação.

A segunda se refere a uma mudança na forma de trocas intelectuais no interior do campo acadêmico - como o volume de produção e de eventos cresceu muito, dando oportunidade a um número maior de jovens pesquisadores de exporem o que produzem e criando uma fragmentação crescente de interesses e possibilidades, está ocorrendo uma rarefação dos conteúdos e a volta da predominânica da oralidade sobre a leitura - ouvir fulano está substituindo o ler fulano, ouvir falar está também substituindo o ler sobre, e por ai vai... em um mar de informação incomensurável são minimizadas as sutilezas e riquezas conceituais e analíticas que se expressam no texto escrito e impedem uma troca mais efetiva entre pessoas de grupos e instituições sem vínculos endogênicos ou de comensalismo acadêmico. Logicamente também não se deve esquecer que o predomínio da oralidade aumenta exponencialmente algumas manifestações das patologias acadêmicas clássicas: "deixa que eu chuto"; "eu tenho o que falar"; "os como nós que são o máximo", "os como eles que são equivocados, mediocres, ignorantes, patéticos, etc.", entre outras...

Enfim, novas situações podem repetir velhos vícios...