Mi Ojo Viejo

Mentiras lindas em palavras lindas, preparadas no calor da hora, temperadas com idéias rápidas para se saborear sem pressa...

28.9.06


O maior brasileiro de todos os tempos.

A Revista Época, requentando uma pauta jornalística já bastante explorada (a eleição do maior brasileiro da História), indicou Ruy Barbosa como o símbolo de virtudes individuais que justificariam sua escolha para o posto de exemplo de virtudes republicanas em uma História do Brasil que facilmente poderia fornecer personagens de impacto para a História Universal da Infâmia, de Jorge Luis Borges. Ruy Barbosa realmente é um símbolo que resiste com uma força incomparável em descrições que constatam esse homem pequeno (1,58 m de altura e 48 kg de peso, em um corpo quase raquítico) com sua obra de grande homem (“Baiano Genial”, “Homem mais inteligente do Brasil”, “Águia de Haia”, entre outras expressões de mérito). Uma análise mais equilibrada deveria trazer para junto de seu valor inquestionável, como na erudição, no compromisso com os ideais liberais e na coragem política, alguns questionamentos fundamentais, a saber: quanto de seu mito se deve ao seu pertencimento ao grupo da elite brasileira que podemos identificar com o bacharelismo e com os setores jurídicos (zelosos em ostentar um símbolo de lisura, brilhantismo intelectual, responsabilidade ética e senso de dever), até que ponto o real e o ideal podem se reafirmar mutuamente, ou ainda, em que medida esse personagem deixou uma herança ainda aceita ou representa uma tradição que foi superada? Oscar Wilde disse certa vez que Bernard Shaw não tinha um único inimigo em todo o mundo, mas que nenhum de seus amigos gostava dele. Ruy Barbosa representa o oposto, alguém que tanto enquanto vivia como após a sua morte, foi capaz de despertar simpatias e críticas igualmente apaixonadas – embora me pareça inevitável concordar com o diagnóstico de Wilson Martins (autor do História da Inteligência Brasileira, editado em sete volumes pela Cultrix e pela TAO, e que cobre a produção intelectual do Brasil do século XVI aos anos sessenta do século XX) que a importância de seu vulto diminui de acordo com que sua imagem está mais presente no que é relatado ou analisado do que naquilo que foi vivido. A tradição intelectual jurídica no país encontrou em Ruy Barbosa um mito fundador, muito mais pela relevância atribuída às suas ações políticas e forenses do que propriamente intelectuais – Fernando de Azevedo chama a atenção para a falta de interesse que o jurista demonstrava para com “discussões sutis, das argúcias e dos raciocínios especiosos”, Capistrano de Abreu o descreveu-o como destituído de cultura filosófica e limitado ao “terrestre amor das realidades”, e mesmo o jurista Miguel Reale reconheceu suas limitações enquanto filósofo ou pensador. Alguns de seus críticos, como Gilberto Freyre ou Mário de Andrade, lhe censuraram a postura política fortemente marcada pelo apego ao formalismo jurídico (o que permite um contraste com a perspectiva social presente no mesmo período em um pensador como Joaquim Nabuco, p.ex.) e o gosto pela retórica na sua concepção mais castiça e estéril, ao mesmo tempo em que embora crítico em relação às instituições tradicionais se alienou em relação aos problemas concretos de sua época. Seus adeptos chamam a atenção para a sua defesa do regime republicano e da estrita obediência às regras institucionais, aliadas à uma desconfiança em relação à política partidária e à ação estatal, que lhe permitiriam apostar na organização da sociedade civil e não se envolver nas disputas próprias à arena política. Em um momento de tensão e crise da política institucional, em que os mesmos valores republicanos e do liberalismo são mais facilmente lembrados em discursos do que em práticas, a escolha de Ruy Barbosa como o maior brasileiro de todos os tempos é muito mais um sintoma de nossas carências do que da possibilidade de qualquer gradação efetiva. Uma biografia honesta de Rui Barbosa apontaria para as contradições que ele e sua época ostentaram, tocando em pontos delicados como nos negócios que realizou com empresários e banqueiros durante e após ocupar o Ministério da Fazenda de Deodoro da Fonseca, na sua polêmica contra Clóvis Beviláqua e Carneiro Ribeiro sobre o Código Civil Brasileiro (na qual sua vaidade ferida por ter sido preterido em favor de outro jurista lhe fez objetar, entre outros arrazoados, que o uso da expressão “privada” no sentido de particular tinha inevitável mau cheiro!), no esforço próprio que fazia para manter o culto à sua personalidade (como em episódio risível no qual um copidesque – funcionário responsável pela correção gramatical em redações jornalística – percebeu que em determinada semana em coluna assinada por Ruy havia sido utilizadas três palavras incomuns que começavam com a mesma letra, e na semana seguinte, outras três, de outra letra, o que mostraria que como escritor o jurista baiano buscava impressionar seus leitores com uma erudição que era apenas pirotécnica verbal), no apego radical ao purismo lingüístico que lhe colocou como símbolo de uma época que foi radicalmente criticada e superada pelo modernismo, entre outras questões que iluminem o homem e a época. Infelizmente ainda estamos não só a esperar obra historiográfica que dê conta de personagem e época tão complexos, o que é uma constatação empírica, como também de lideranças que possam equiparar suas qualidades, o que é um desejo sincero.

Texto publicado na Pronto! Revista de Cultura ( www.revistaprono.com.br ), no dia 14/09/2006.