Mi Ojo Viejo

Mentiras lindas em palavras lindas, preparadas no calor da hora, temperadas com idéias rápidas para se saborear sem pressa...

21.10.06

INTERVALO LITERÁRIO:

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com olhos doces,Estendendo-me os braços, e segurosDe que seria bom se eu os ouvisseQuando me dizem: "vem por aqui"!Eu olho-os com olhos lassos,(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)E cruzo os braços,E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:Criar desumanidade!Não acompanhar ninguém.- Que eu vivo com o mesmo sem-vontadeCom que rasguei o ventre a minha mãe.
Não, não vou por aí! Só vou por ondeMe levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,Por que me repetis: "vem por aqui"?Prefiro escorregar nos becos lamacentos,Redemoinhar aos ventos,Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,A ir por aí...
Se vim ao mundo, foiSó para desflorar florestas virgens,E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vósQue me dareis machados, ferramentas, e coragemPara eu derrubar os meus obstáculos?...Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,E vós amais o que é fácil!Eu amo o Longe e a Miragem,Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! tendes estradas,Tendes jardins, tendes canteiros,Tendes pátrias, tendes tectos,E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;Mas eu, que nunca principio nem acabo,Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!Ninguém me peça definições!Ninguém me diga: "vem por aqui"!A minha vida é um vendaval que se soltou.É uma onda que se alevantou.É um átomo a mais que se animou...Não sei por onde vou,Não sei para onde vou,- Sei que não vou por aí. (Poema "Cântico Negro", do poeta português José Régio [1901-1969])



Os ratos de biblioteca.

O astrofísico Carl Sagan (1935 - 1996), brilhante divulgador científico, disse certa vez que os filmes de Hollywood nos levavam a acreditar que se as abelhas ou os pássaros fossem dotados de razão, rapidamente dominariam o mundo, mas que, na prática, os intelectuais, que possuíam tantas respostas sobre o mundo, eram dotados de razão e incapazes de construírem um mundo mais razoável!

Millôr Fernandes não deixou por menos: "Intelectual é um cara capaz de chamar a galinha em meia dúzia de línguas diferentes, mas pensa que quem põe ovo é o galo."

A fina ironia, a aberta desconfiança ou mesmo o franco antagonismo em relação aos intelectuais, essa casta que se dedica à atividades mentais entre o devaneio, a elucubração e o onanismo mental, crescem visivelmente no início desse novo século – talvez pelo contraste com a significativa importância que desfrutaram nos dois séculos anteriores (o XIX dos eruditos e o XX dos engajados).

Entre os intelectuais brasileiros do século XIX e XX, criaram-se diversos discursos para explicar o presente e projetar o futuro do Brasil nas obras de Varnhagen, Capistrano de Abreu, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Nélson Werneck Sodré, Caio Prado Jr., Florestan Fernandes e de Fernando Henrique Cardoso, entre outros. Se de um lado o cânone sobre os intérpretes do Brasil está de tal forma consolidado que Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr. são singelamente chamados de “os três porquinhos” (no sentido de que suas obras são referências obrigatórias tanto pelo valor individual quanto pelo momento e as diferentes idéias que representam), por outro é consensual a impossibilidade de se pensar em teorias explicativas ou projetivas com uma perspectiva globalizante nos dias atuais.

De qualquer forma, ler sobre essas teorias e refletir sobre suas limitações e potencialidades ainda é bastante interessante e significativamente enriquecedor, o que pode ser percebido pelo volume e qualidade da produção acadêmica dedicada ao tema, da qual destaco três publicações recentes: o didático As Identidades do Brasil 2: de Calmon a Bomfim (FGV), de José Carlos Reis, que complementa o volume 1 (hoje na 8ª. Edição mas que foi lançado em 1999 e no qual o cânone foi abordado de forma mais tradicional, discutindo as obras mais clássicas do século XIX e XX que valorizavam a herança lusa ou propunham uma identidade própria) ampliando as reflexões em direção ao pensamento ultraconservador (Pedro Calmon, Afonso Arino de Mello Franco e Oliveira Vianna) e revolucionário (Manoel Bomfim), em um trabalho que conjuga seriedade e acessibilidade; o estudo sobre a obra de Ronald de Carvalho entre 1910 e 1930, n’O Brasil e os Dias: Estado-Nação, Modernismo e Rotina Intelectual (EDUSC), de André Botelho, que discute a partir do perfil intelectual e da atuação daquele diplomata a forma como literatura, política e cultura brasileira interagiram no período estudado; e finalmente, LeiturasBrasileiras: Itinerários no Pensamento Social e na Literatura (PAZ E TERRA), de Mariza Velolso e Angélica Madeira, em um trabalho à quatro mão que uniu uma teórica em literatura e uma antropóloga para pensarem a modernidade brasileira a partir de reflexões sobre as obras de Mário de Andrade, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque e do engajamento e contracultura entre os anos 50 e 70.

Talvez a partir de algumas idéias expostas nas obras acima sejamos capazes de entendermos os riscos que corremos quando, como hoje, os intelectuais estão ameaçados de serem substituídos de forma definitiva pelos malabaristas da mídia (aqueles colunistas, artistas e especialistas que são formados no Instituto “Deixa que eu chuto” de Achismos e Obviedades)...

Na mesma velocidade em que o rato de biblioteca, uma espécie em extinção ainda não protegida pelo IBAMA, desaparece e se multiplicam as antas midiáticas, as desrazões contemporâneas se tornam mais aceitáveis e razoáveis!

Depois de tantas certezas e tantos sonhos oferecidos pela “intelligenza”, é o triunfo da “ignoranza”.

Como o esquizofrênico da piada, eu sei que dois mais dois são quatro, mas não me conformo com isso.

(Publicado na Revista Pronto de Cultura - www.revistapronto.com.br - em 04/10/2006, ilustração o quadro O Bibliotecário, de Archimboldo, pintado em 1565.)

1.10.06



INTERVALO MUSICAL: Mestre Jonas (Sá, Rodrix e Guarabira)

Dentro da baleia mora mestre Jonas, / Desde que completou a maioridade, / A baleia é sua casa, sua cidade, / Dentro dela guarda suas gravatas, seus ternos de linho. / E ele diz que se chama Jonas, / E ele diz que é um santo homem, / E ele diz que mora dentro da baleia por vontade própria, / E ele diz que está comprometido, / E ele diz que assinou papel, / Que vai mantê-lo dentro da baleia, / Até o fim da vida, / Até o fim da vida. / Dentro da baleia a vida é tão mais fácil, / Nada incomoda o silêncio e a paz de Jonas. / Quando o tempo é mal, a tempestade fica de fora, / A baleia é mais segura que um grande navio. / E ele diz que se chama Jonas, / E ele diz que é um santo homem, / E ele diz que mora dentro da baleia por vontade própria, / E ele diz que está comprometido, / E ele diz que assinou papel, / Que vai mantê-lo dentro da baleia, / Até o fim da vida, / Até o fim da vida, / Até subir pro céu...

(Há uma versão muito legal com Os Mulheres Negras, do Maurício Pereira e André Abujamra; foto de Wang Qingsong, “Requesting Buddha 1”, 1999)