Mi Ojo Viejo

Mentiras lindas em palavras lindas, preparadas no calor da hora, temperadas com idéias rápidas para se saborear sem pressa...

21.10.06



Os ratos de biblioteca.

O astrofísico Carl Sagan (1935 - 1996), brilhante divulgador científico, disse certa vez que os filmes de Hollywood nos levavam a acreditar que se as abelhas ou os pássaros fossem dotados de razão, rapidamente dominariam o mundo, mas que, na prática, os intelectuais, que possuíam tantas respostas sobre o mundo, eram dotados de razão e incapazes de construírem um mundo mais razoável!

Millôr Fernandes não deixou por menos: "Intelectual é um cara capaz de chamar a galinha em meia dúzia de línguas diferentes, mas pensa que quem põe ovo é o galo."

A fina ironia, a aberta desconfiança ou mesmo o franco antagonismo em relação aos intelectuais, essa casta que se dedica à atividades mentais entre o devaneio, a elucubração e o onanismo mental, crescem visivelmente no início desse novo século – talvez pelo contraste com a significativa importância que desfrutaram nos dois séculos anteriores (o XIX dos eruditos e o XX dos engajados).

Entre os intelectuais brasileiros do século XIX e XX, criaram-se diversos discursos para explicar o presente e projetar o futuro do Brasil nas obras de Varnhagen, Capistrano de Abreu, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Nélson Werneck Sodré, Caio Prado Jr., Florestan Fernandes e de Fernando Henrique Cardoso, entre outros. Se de um lado o cânone sobre os intérpretes do Brasil está de tal forma consolidado que Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr. são singelamente chamados de “os três porquinhos” (no sentido de que suas obras são referências obrigatórias tanto pelo valor individual quanto pelo momento e as diferentes idéias que representam), por outro é consensual a impossibilidade de se pensar em teorias explicativas ou projetivas com uma perspectiva globalizante nos dias atuais.

De qualquer forma, ler sobre essas teorias e refletir sobre suas limitações e potencialidades ainda é bastante interessante e significativamente enriquecedor, o que pode ser percebido pelo volume e qualidade da produção acadêmica dedicada ao tema, da qual destaco três publicações recentes: o didático As Identidades do Brasil 2: de Calmon a Bomfim (FGV), de José Carlos Reis, que complementa o volume 1 (hoje na 8ª. Edição mas que foi lançado em 1999 e no qual o cânone foi abordado de forma mais tradicional, discutindo as obras mais clássicas do século XIX e XX que valorizavam a herança lusa ou propunham uma identidade própria) ampliando as reflexões em direção ao pensamento ultraconservador (Pedro Calmon, Afonso Arino de Mello Franco e Oliveira Vianna) e revolucionário (Manoel Bomfim), em um trabalho que conjuga seriedade e acessibilidade; o estudo sobre a obra de Ronald de Carvalho entre 1910 e 1930, n’O Brasil e os Dias: Estado-Nação, Modernismo e Rotina Intelectual (EDUSC), de André Botelho, que discute a partir do perfil intelectual e da atuação daquele diplomata a forma como literatura, política e cultura brasileira interagiram no período estudado; e finalmente, LeiturasBrasileiras: Itinerários no Pensamento Social e na Literatura (PAZ E TERRA), de Mariza Velolso e Angélica Madeira, em um trabalho à quatro mão que uniu uma teórica em literatura e uma antropóloga para pensarem a modernidade brasileira a partir de reflexões sobre as obras de Mário de Andrade, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque e do engajamento e contracultura entre os anos 50 e 70.

Talvez a partir de algumas idéias expostas nas obras acima sejamos capazes de entendermos os riscos que corremos quando, como hoje, os intelectuais estão ameaçados de serem substituídos de forma definitiva pelos malabaristas da mídia (aqueles colunistas, artistas e especialistas que são formados no Instituto “Deixa que eu chuto” de Achismos e Obviedades)...

Na mesma velocidade em que o rato de biblioteca, uma espécie em extinção ainda não protegida pelo IBAMA, desaparece e se multiplicam as antas midiáticas, as desrazões contemporâneas se tornam mais aceitáveis e razoáveis!

Depois de tantas certezas e tantos sonhos oferecidos pela “intelligenza”, é o triunfo da “ignoranza”.

Como o esquizofrênico da piada, eu sei que dois mais dois são quatro, mas não me conformo com isso.

(Publicado na Revista Pronto de Cultura - www.revistapronto.com.br - em 04/10/2006, ilustração o quadro O Bibliotecário, de Archimboldo, pintado em 1565.)