Os prazeres viciosos.
Entre os meus vícios eventuais está o de me perder entre prateleiras e pilhas de livros em sebos em diferentes cidades que visito, namorando títulos esparsos, buscando um ou outro objeto de desejo e enfrentando um exército de ácaros de diferentes patentes e procedências . Em um desses exercícios de curiosidade bibliofílica esbarrei com um pequeno mas importante livro, com o título acima, de autoria do Prof. Dr. William Drauger, editado pela Livraria e Editora Antônio de Carvalho, de São Paulo, sem data, mas que nos alerta que tal volume faz parte de coleção sobre temas sexuais com “obras de caráter rigorosamente científico-privado, destinado as pessoas de maioridade que desejem se esclarecer melhor sobre os assuntos relacionados com a vida sexual”. As décadas que nos separam da edição do livro são capazes de causar grandes surpresas, em uma mistura de riso e espanto, como por exemplo quando o autor nos avisa da relação direta entre a prática da masturbação e o surgimento de diferentes formas de loucura (embora no século XIX Oscar Wilde houvesse dito que tal prática era uma forma de sexo vantajoso por ser mais limpo, prático e sempre praticado com alguém de classe!).
A coleção seria formada por cinco volumes que parecem indispensáveis para uma vida sexual saudável e regrada. O primeiro, Conselhos a um jovem esposo, com o útil subtítulo de “O comportamento sexual do homem na primeira noite de núpcias”, de autoria do médico A. Martin de Lucenay, autoridade científica sobre pudor, jogo amoroso, zonas erógenas e conselhos morais se mostra imprescindível para o início correto da vida marital, sendo temerário imaginar os riscos de depravação que correriam aqueles que não se informassem suficientemente. O segundo, A ciência das carícias, do mesmo autor, que amplia as demonstrações de seus conhecimentos e habilidades ao se oferecer para ampliar as práticas táteis dos interessados, dentro dos limites das práticas privadas que seriam socialmente aceitáveis. O terceiro volume, Os prazeres viciosos, título já citado, que possui o sugestivo subtítulo de “Perversões e aberrações sexuais, suas causas, seus remédios”, oferece uma lista que classifica dezenas de taras e parafilias (com enorme destaque para a masturbação e a homossexualidade!) além de discutir causas e tratamentos. O quarto, A Força Viril, do Dr. Franz Keller, promete oferecer conselhos para não só se conservar a virilidade até idade avançada, como também de recuperá-la depois de abusos, enfermidades e outros males. E finalmente,o quinto, A Mulher no Amor e na Voluptuosidade, do Dr. E. Tairens Draga, que permite ao leitor identificar os elementos que compõe a beleza feminina, assim como diferenciar como desfrutar o amor natural das mulheres e impedir a manifestação de suas depravações, elencando inclusive diversos exemplos de mulheres voluptusosas ao longo da história.
Em meio ao cômico e do non-sense de algumas das afirmações e promessas dos autores e do editor, inevitavelmente se sente, entre o cheiro do papel velho e dos ácaros, a presença do temor frente ao sexo que caracterizavam as abordagens tradicionais da sexualidade antes da Revolução Sexual dos anos 60, colocando a medicina como avalista de uma abordagem moral do tema. Os cinco volumes (embora deva confessar minha especial curiosidade pelo de número quatro – aquele sobre a força viril – na esperança de que as famosas pílulas azuis não sejam a única opção para aquele momento futuro em que o trabalho começa a dar imenso prazer e o prazer, imenso trabalho!) hoje são apenas parte de um retrato curioso de uma época, que permite perceber a origem e a sobrevivência de alguns preconceitos, assim como constatar a superação de outros.
Se a sexualidade alimentou e alimenta a industria editorial de forma significativa a algumas décadas, na historiografia brasileira, no entanto, o tema da sexualidade não é um dos mais referenciados, ocupando uma posição secundária dentro dos cânones e do ambiente acadêmico – o que é de se lamentar com toda a certeza!
Entre os clássicos da historiografia brasileira, encontramos em Paulo Prado (Retrato do Brasil: Ensaio sobre a Tristeza Brasileira, Companhia das Letras), em texto de 1928, uma primeira abordagem do tema, o que ocorrerá de forma mais recorrente na obra de Gilberto Freyre (Casa Grande e Senzala e Sobrados e Mucambos), obras de 1933 e em suas descrições sobre a vida sexual nos engenhos, retomado-o em diferentes momentos da produção intelectual do autor.
Na década de 80 e início da de 90, em paralelo ao fortalecimento dos movimentos sociais de mulheres e homossexuais, trabalhos pioneiros passam a ganhar destaque, como os trabalhos do antropólogo Luiz Mott, da UFBA, sobre a sexualidade no Brasil Colônia (O sexo proibido: virgens, gays e escravos nas garras da Inquisição, Editora Papirus), Ronaldo Vainfas (Trópico do Pecado, Campus), Angela Mendes de Almeida (O Gosto do Pecado: casamento e sexualidade nos manuais de confessores dos séculos XVI e XVII, Rocco), Margareth Rago (Os Prazeres da Noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em S. Paulo, 1890-1930, Paz e Terra) e Ligia Bellini (A Coisa Obscura: mulher, sodomia e Inquisição no Brasil Colonial, Brasiliense), entre outros.
Hoje os temas como Gênero, Corporalidade e Sexualidade são recorrentes dentro da Antropologia, área das ciências sociais que tem mantido um maior diálogo com a historiografia, e talvez isso possibilite tanto a ampliação do interesse dos historiadores como a inovação de abordagens e enfoques dentro de tais temas, para alegria dos estudiosos, dos diletantes e dos curiosos.
(Artigo publicado em Revista Pronto de Cultura [ www.revistapronto.com.br ], em 07/07/2006; ilustração "O Fenômeno do Êxtase", de Salvador Dali.)